Onde estava o povo brasileiro?

 Jefferson Evânio da Silva

Professor da Rede Estadual de Pernambuco
Doutorando em Educação, Universidade Federal de Pernambuco

Onde estava o povo brasileiro? Essa questão, que talvez possa parecer profundamente pedante e retórica para muitos intelectuais progressistas inconformados com o resultado do pleito eleitoral no 1º turno da eleições presidenciais deste ano, na verdade deve sua razão de ser a uma poderosa fantasia social que anima parte importante do núcleo duro do pensamento político brasileiro: sua aposta numa possível vocação ontológica do povo para o progresso, para a “felicidade” e/ou para a tão desejada “revolução”. Na literatura, nas artes, no cinema, na gramática do pensamento social brasileiro, esta é mesmo uma das características mais importantes da forma como se construiu nossa imaginação política sobre o povo no Brasil.

Provavelmente, muitos de nós estamos perplexos com o desempenho nenhum pouco desprezível de Jair Messias Bolsonaro nas eleições do último domingo. Pouco mais de 50 milhões de votos válidos, contra pouco mais de 55 milhões atribuídos à Luiz Inácio Lula da Silva. Soma-se a esta votação expressiva do atual presidente da República, a eleição de governadores, senadores e deputados federais identificados como membros da ala mais radical do bolsonarismo. Na contramão deste acontecimento político, acreditava-se que o conjunto das demandas populares e o circuito de afetos produzidos pela “ingerência” de Bolsonaro durante a Pandemia do Corona Vírus, e por toda diversidade de violência política por ele cometida iriam assumir uma força tão avassaladora no sentido de suas equivalências na luta contra o neoconservadorismo brasileiro que a vitória de Lula seria possível já no primeiro turno. Estávamos errados. O inverso também ocorreu. Um inverso que não foi devidamente capitado pelas pesquisas eleitorais e seus métodos tradicionais. Mas e o povo, onde estava? Aqueles que responderam aos questionários dos Institutos de Pesquisa não compareceram às urnas? Ou faltaram com a verdade? Ao que parece, para responder a essa questão, é necessário insistir numa outra pergunta: que, de fato, é o povo? É possível captar o povo naquilo que ele mesmo diz?

A literatura especializada, especialmente aquela inspirada nos trabalhos de Ernesto Laclau, tem insistido no caráter radicalmente vazio e flutuante do deste significante. Por um lado, o povo é uma identidade impossível e, ao mesmo tempo, necessária; por outro, a identidade popular está sempre em disputa no universo da discursividade da vida social. Resumidamente, essa forma de ver a questão da identidade popular nos orienta no sentido de desconfiarmos profundamente de uma suposta vocação ontológica do povo para a transformação do social (no sentido “progressista”, “democrático”, como se queira ou não). Não há um povo pré-fabricado, existente anteriormente das batalhas hegemônicas. Por conseguinte, o comportamento eleitoral do último domingo não nos revela algo como a natureza da identidade popular (ainda que “perversa”, como incorretamente se imagina muitas vezes). O resultado das eleições presidenciais nos revela, no máximo, a capacidade dos modelos e processos de subjetivação política em constituírem-se como forças hegemônicas na sociedade. O lulismo demonstrou-se forte, muito forte; o bolsonarismo, também. Muito além do que esperávamos, diga-se de passagem.

Assim, somos convidados a repensar todo um modelo sócio-analítico a partir do qual aprendemos a localizar o povo brasileiro. Toda uma sorte de lógicas mediante as quais acreditávamos que poderíamos captar algo como sua própria natureza, seus desejos e fisionomia. Definitivamente, o povo não é uma forma de pura presença que se manifesta de acordo com a vontade do analista; também não é a base ontológica (pré-fabricada, concretamente auto-transparente) dos processos históricos. O povo não possui uma “natureza de bode”, como diria Shakspeare; ou uma “natureza insurrecional” como diria os historiadores da ortodoxia marxista. O povo também não é burro, como gostariam de dizer (o que pensam) muitos de nossos liberais. E, contudo, o povo é. Sem dúvida alguma. O povo é aquilo que se faz dele. O signo de alguma coisa, e não de outra, sempre. Deve sua existência à ação de um Outro. Deve sua emergência a um conjunto de forças políticas antagônicas e hegemônicas. Além disso, ele também não é o Todo social. Como diz Laclau, “existe sempre algo, no povo, que escapa ao próprio povo”. Para muitos, é justamente este excesso não incorporado no último domingo, que deverá garantir a vitória da democracia no segundo turno. Ele virá, ao menos parte dele; mas, ainda assim, o povo jamais poderá ser lido como a totalidade orgânica que dá nome ao conjunto de todos os nossos afetos e demandas políticas.

Ainda que o crepúsculo de um dos ídolos do neoconservadorismo contemporâneo venha a romper no horizonte próximo, haverá um povo com o qual será preciso dialogar e cujo diálogo não será nada fácil. Haverá povos para salvar, povos para convencer, povos para educar, povos para cuidar, e, certamente, um povo a combater democraticamente. E haverá, também, um povo muito resistente ao convencimento das vozes democráticas. Não é possível negar a capacidade do bolsonarismo de fabricar povo. Povo graúdo. Um povo que lê a história brasileira ao seu modo. Do modo como vem religiosamente aprendendo a ler. A história, por sua vez, constantemente em movimento, marcada por uma multiplicidade de regimes de historicidade, como insistiu Laclau, “não é um processo autodeterminado. A opacidade de uma exterioridade irrecuperável sempre empanará as categorias que definem a interioridade”. O que vale para a história, vale também para o seu sujeito: o povo.

Finalmente, tão inevitável quanto a exterioridade à qual se refere Laclau, é a imposição do populismo enquanto lógica política hegemônica na contemporaneidade. Apesar do apelo insistente de muitos intelectuais, notadamente liberais, de que o problema da democracia reside na estrutura “irracional” do populismo e seus estratagemas retóricos (diagnóstico que muitas vezes acerta o alvo mas peca na estratégia analítica), o populismo descrito por Laclau e Chantal Mouffe é uma lógica política cuja ação se tornou inquestionável, incontornável, para além de bem e mal. Se esta é a lógica que tem servido de combustível aos processos de subjetivação política e, portanto, aos protocolos de identificação política no Brasil, nos resta torcer, e, sobretudo, lutar, para que o povo que ela venha a produzir não se torne, ele mesmo, o inimigo mortal da própria democracia brasileira. Uma democracia tão jovem e constantemente convidada a morrer; ultimamente, muito em razão da fome da necropolítica em dar morte não apenas a certos corpos e sujeitos, mas, inclusive, àqueles regimes políticos que deveriam permitir à vida esgotar todas as suas possibilidades de realização.


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