Reflexões sobre o voto evangélico

Eu li que uma pesquisa do Datafolha mostra 66% de apoio a Bolsonaro no meio evangélico. OK. Aceitemos em princípio a correção do dado. Estaríamos diante do fenômeno que em alguns países se chama de "voto evangélico". O que significa tal expressão? Que há um conteúdo específico, geral e estavel no voto dos/das eoeitores/as evangélicos/as? Não tenho uma posição fechada sobre a noção de "voto evangélico", 
Se a ideia de voto evangélico diz respeito a um tipo de voto, sempre alinhado ideologicamente, o termo é claramente falso. Nos anos 1970 os evangélicos votaram no partido da ditadura (Arena, mas já no fim da década cresceu o voto no MDB. Nos anos 1980, votaram no partido da oposição (MDB/PMDB). Em 1983/84 formaram-se comitês evangélicos pró-diretas em quase todo o pais. Nas eleições presidenciais de 1989, se dividiram entre os trabalhistas de Brizola, a direita de Collor e a esquerda de Lula. De novo, havia comitês pro-Brizola e pro-Lula em muitos estados do pais. Nos anos 1990, votaram no partido do Plano Real (PSDB, de centro). Nós anos 2000 a 2014 votaram em Lula e Dilma, mas tambem votaram nos candidatos do PSDB. Em 2018, votaram em Bolsonaro, mas teriam votado em Lula, se ele tivesse permanecido na disputa. Por esse critério, não há voto evangélico, sempre em uma tendência ideológica. 

Talvez seja preciso buscar outro entendimento para o sentido do voto evangélico, se é que isso existe. Sugiro três. Primeira, o peso do voto evangélico é real. Para onde ele pende, exerce uma influência decisiva na eleição. Mas não é possível dizer de antemão para quem perderá. Os evangélicos tendem a reconhecer e respeitar suas lideranças. E se mobilizarem em torno dela, até segunda ordem. Sempre há um percentual dissidente, cujo tamanho é variável  - porque a proximidade dos evangélicos em relação a seus líderes é muito menor do que em outros espaços sociais e, assim, a avaliação da confiabilidade e tirocínio dos líderes é permanente e volátil. Não apenas há líderes que "liberam" o voto de seus paroquianos e congregantes, mas há também os que não seguem o conselho de seus líderes, precisamente por conhecê-los bem e saber de onde vem sua recomendação de voto. E separam sem problema a palavra autorizada dos sermões da palavra falível e interessada das orientações políticas. Como também separam as pretensões de "revelação" de seus líderes e suas mudanças de posição contraditórias, ao longo do tempo, que relativizar sua capacidade de discernimento político em comparação com a dos fiéis.

Segunda, o voto evangélico, se é que isso existe, tem se manifestado, desde os anos 1980, sem interrupção, como um voto em que se combinam um juízo sobre a situação geral da sociedade e específica dos eleitores e eleitoras evabgelcios/as, a um juízo sobre o quanto as candidaturas apresentadas representam elementos distintivos das aspirações evangélicas -  de exercer uma influência sobre o ordenamento social a despeito de sua condição minoritária, que possa ser lida como um êxito evangelizador ou um sinal de que o "governo de Deus" avança. O problema disso é que não existe nenhuma maneira de definir de modo categórico, apodítico, qual candidatura, qual força política correspondem a essa aspiração evangélica. E mesmo quando houve candidaturas evangélicas à presidência, não houve acordo em votar maciçamente nelas. Muito pelo contrário. Garotinho e Marina tentaram, ele mais do que ela, e não se pode dizer que suas expressivas votações foram exclusivamente oriundas do campo evangélico. Pastor Everaldo, em 2014  candidato pelo partido da Assembleia de Deus, o PSC, teve 0,75% dos.votos, enquanto os assembleianos votavam em Dilma e Aécio.

Que é o voto evangélico, então? Foi em Bolsonaro, em 2018. Deve ser, de novo, em Bolsonaro, em 2022. Mas já foi em tantos e tão diferentes candidatos que não é possível afirmar que haja uma coerência programática nesse voto. Ele é mais um voto que reflete sincronia entre líderes e liderados, de um lado, antes e por fora da identificação ideológica ou partidária. Líderes que recomendam votar njm ou noutro candidato, mas que também recomendam votar livremente, discernindo pessoalmente quem escolher. É um voto de aspiração a uma mudança que vai muito além de projetos imediatos (quer sejam os "valores bíblicos" ou o "reino de Deus"). Quanto mais além, quanto mais apoiado numa imaginação teológica do futuro ou da vontade divina, maior a distância entre as opções e a base teologico-politica para o voto, e maior a oscilação, ao longo do tempo, entre opções de conteúdos políticos muito diferentes. Isso recomenda atenção à liderança evangélica, de parte de quem quer o apoio dos evangélicos. E da parte de quem quer entender o voto evangélico.

Mas há um terceiro elemento a considerar: a contingência. No caso recente, como no inicio dos anos 1980, entre os pentecostais e os evangelicais, o surgimento de mobilizações internas para conquistar a direção política da liderança evangélica e da representação política evangélica,  para então conquistar a direção do "povo evangélico". Isso é o que tem acontecido desde que parlamentares de direita evangélicos começaram a construir um discurso de incompatibilidade entre o governo do qual participavam e os "valores cristãos",  no começo dos anos 2010. É daí que vem a aliança com Bolsonaro. É daí que vem a nova onda de "anticomunismo" evangélico. É daí que vem o casamento de teologia da prosperidade com neoliberalismo. É daí que vem a aliança com a direita católica. É daí que virá, um pouco como reação interna,  no campo não-pentecostal, o neocalvinismo de presbiterianos e batistas conservadores. Não há nada de fortuito, inesperado, surpreendente, nesse processo. É movimento, ação coletiva, reação conservadora aos rumos da democratizacao expansiva, minoritizante, pluralizante, da era lulista. É talvez o primeiro projeto conscientemente articulado para transformar o "voto evangélico" na expressão de um programa. A guerra de posições no interior do campo evangélico jogada à luz da cena social ampla. Religião pública como populismo de direita: povo evangélico como "maioria cristã" que apela a católicos de direita e a quem quer que, difusamente, sincreticamente, bem à brasileira, se diz "cristão". Ironicamente, neste programa político conservador evangélico, a prática coerente e mesmo efetiva da fé cristã importa menos do que a identificação com uma ideologia da fé: "Deus acima de todos"; defesa da "família" como projeto de Deus (definida numa moral patriarcal, heterossexual e como unidade básica da sociedade, que mistura noções pré-modernas com a visão neoliberal de família); punitivismo legal que expressa um autoritarismo social e uma visão veterotestamentária de justiça (lei de Talião - olho por olho, dente por dente - o uso da guerra como mecanismo de purificação e a lei do anátema - ou seja, do genocídio absoluto, extermínio total do inimigo para extirpação do mal); adesão à um ultraliberalismo econômico e social a partir da compreensão religiosa de que cada pessoa está sozinha perante Deus e que suas vitórias e fracassos são relação direta do aporcionamento individual da graça e da ira divinas.

Bem, o voto evangélico, nesta conjuntura, radica no sucesso da estratégia "neoconservadora" (no sentido norte-americano do termo - ideologia antiesquerda, antiestado, moralista) no meio evangélico, facilitada precisamente pelas características das duas primeiras hipóteses que levantei. Existe "o voto evangélico"? Empiricamente, sim. Os evangélicos votam e é possível acompanhar essas escolhas a cada eleição, estatística e qualitativamente. Mas se por isso se pretende uma definição essencializante do voto dos evangélicos como voto em bloco e sempre alinhado a uma ideologia específica ou mesmo a um único campo ideológico, estou fora. Voto evangélico é uma quimera usada para assustar os crédulos.

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