Duas formas de religião pública e a construção do povo
Joanildo Burity
Nas últimas cinco décadas pode-se perceber a emergência de duas formas de religião pública, cuja configuração envolveu distintas "fases" de elaboração e experimentação socio-histórica: o cristianismo da libertação e a minoritização pentecostal-cum-maioria-cristã. O caso brasileiro talvez seja o exemplo mais acabado da segunda, mas é preciso insistir no contexto latino-americano dessas duas formas, tanto quanto no seu caráter aberto e cambiante. Não é possível aqui explorar em detalhe a trajetória de constituição e desfecho recente dessas duas variantes de um discurso cristão sobre a imbricação da fé (e da instituição religiosa que a sustenta e se faz de seu critério último de adjudicação de autenticidade e legitimidade) com o ordenamento social-histórico.
Sobre a primeira, essa história está sobejamente demonstrada em nível continental e na literatura internacional sobre a teologia da libertação e a Igreja popular, inclusive quanto à distinção entre os ramos católico-romano, protestante e ortodoxo. Como há mesmo um efeito-demonstração da teologia da libertação em outras religiões - como o Islã - autores como Michael Löwy têm denominado a religião pública de matriz católica e protestante (não me parece que ele considere a variante ortodoxa) de "cristianismo da libertação", que acolho nesta análise (ver seu O que é cristianismo da libertação? Religião e política na América Latina, de 2016). Esta especificação tem o sentido, em Löwy, de recolher a diversidade intracristã do discurso da libertação, mas, podemos dizer, tem ainda a felicidade de, inadvertidamente, precaver-se da existência de outros discursos religiosos não-cristãos da libertação (isto é, inspirados na difusão global da teologia da libertação, mas construídos a partir de suas próprias fontes de fé).
Sobre a segunda, o registro é muito mais disperso. Há muita coisa escrita sobre a emergência pentecostal nas últimas décadas na América Latina. Grande parte contenta-se em descrever casos locais e nacionais (ou extrapolar destes para explicações mais generalizadoras), com menos ênfase em construção teórica (ou talvez, mais modestamente, interpretações histórico-político-sociológicas) do fenômeno em seu conjunto. Há alguns anos, tenho proposto um modelo de análise que combina um argumento referente à emergência pública do pentecostalismo (como minoritização, termo emprestado da leitura deleuziana de William Connolly) e um argumento referente à transformação do discurso de asserção minoritária em um discurso de pretensões hegemônicas (o da "maioria cristã", não como "maioria moral", mas como categoria demográfico-cultural e política designadora de um povo).
Pois bem, o que pretendo nesta nota é simplesmente juntar algumas poucas observações sobre a caracterização desses dois campos e, em seguida, "aplicar" o quadro interpretativo resultante aos acontecimentos mais recentes da política brasileira, pós-impeachment (portanto, ancorados numa conjuntura que vem desde a reeleição de Dilma Rousseff à presidência da República do Brasil). O sentido da reflexão é aventurar-se a prever um processo de disputa mais aberta e estratégica entre o que, grosseiramente, poderíamos fazer corresponder à distinção proposta no início, chamando de esquerda e direita cristã. Não é possível ainda falar-se de uma nova fase na política religiosa brasileira, mas talvez dos indícios de que algo está em germinação, apontando para a continuidade da evidência que a religião pública assumiu no cenário brasileiro e de alguns países latino-americanos nos últimos anos (sendo talvez, Colômbia, Bolívia e Nicarágua os outros casos mais notáveis). E não será possível, por razões de espaço, explorar igualmente os lados católico-carismático-liberacionista e protestante-evangélico-pentecostal da diferenciação intracristã, oscilando a análise em torno da questão da religião pública (que definirei oportunamente).
Sobre o cristianismo da libertação, é importante ressaltar que a articulação deste discurso tem duas temporalidades originadas no século XX, uma católica e uma protestante. A primeira, vinculada a radicalizações do modelo de ação católica referentes ao público a que se dirigiam e ao conteúdo ideológico propositivo que foram assumindo, a saber, uma perspectiva progressivamente socialista, desde os anos 1930. Esta vertente "amadurece" num discurso teológico-político cada vez mais voltado ao ativismo social, entre os anos 1930 e 1960, e assume uma formulação revolucionária juntamente com o nome de "teologia da libertação", no final dos anos 1960. A segunda temporalidade, protestante, vincula-se ao desdobramento da teologia do "evangelho social" norte-americano, desenvolvida por Rauschenbusch, avô de Richard Rorty, nos anos 1910, e do "socialismo cristão" europeu, que teve em Paul Tillich seu mais sistemático proponente), num discurso da revolução, já nos anos 1950, que grassou junto com a expansão do ecumenismo institucional (ou seja, referenciado no Conselho Mundial de Igrejas) pela América Latina, aproximando-se das correntes católicas, mas gerando uma formulação idêntica no nome - "teologia da libertação" - com Rubem Alves, mas com implicações menos ancoradas na pastoral e mais na radicalização de minorias pouco vinculadas às igrejas.
Entre fins dos anos 1960 e começo dos anos 1980, deu-se uma confluência entre católicos e protestantes (particularmente, aqui, os referenciados no campo ecumênico) em termos do engajamento concreto em ações de resistência às ditaduras ou em processos revolucionários, especialmente na América Central, sendo a revolução nicaraguense e as lutas revolucionárias em El Salvador os casos mais clássicos. Aqui toda a relevância da noção de "cristianismo da libertação" se exibe, pois desenvolvimentos teológicos e formas de intervenção pastoral ou explicitamente sociopolítica antes distintas, encontrando-se de modo assistemático e episódico, convergem num campo de intervenção político-religiosa, ancorado eclesialmente, mas não centrado na forma-igreja-institucional. Esta a segunda temporalidade mencionada no parágrafo anterior, a emergência de um ator religioso passível de ser identificável, em seu conjunto, como cristianismo da libertação: católico, protestante, em bem menor grau, evangelical, e ecumênico (a partir dos anos 1990, crescentemente aberto ao "diálogo interreligioso").
No contexto dos anos 2000, o campo católico e o campo protestante-ecumênico liberacionistas convergiram numa sólida aliança intelectual e estratégica - elaboração teológica, apoio mútuo e parcerias na implementação de ações pastorais via organizações de missão de igrejas ou ONGs autônomas. Mais do que isso, esses campos assumiram integralmente o discurso da minoritização como discurso da democracia, da legitimidade das diferenças e do pluralismo social e religioso (ou seja, "diálogo interreligioso"), que descentrava a identidade especificamente cristã do movimento, numa perspectiva hegemônica bem explicada por Laclau: uma particularidade apresentando-se como capaz de representar um conjunto de demandas e aspirações também particulares, mas todas vistas como legítimas, numa cadeia de equivalências diversamente denominada de "campo democrático-popular", "democracia radical" ou "pluralismo religioso", conforme o grupo ou a ocasião a interpelassem. Esta minoritização não era originária em seu conteúdo, mas na forma articulada, convergente sem fusão, assumida por sua organização e voz pública. Fez parte quase "invisível" das estruturas governamentais do período lulista (2003 a 2016), em nível de setores governamentais (como os ministérios "sociais"), em assessorias e cargos de coordenação em vários níveis, inclusive em órgãos públicos federais. Não buscava articular uma voz eclesiástica, nem representar as igrejas senão em termos agonísticos com a minoritização pentecostal e evangélico-conservadora. Entendia sua presença em termos de solidariedade com os setores excluídos ou as minorias mobilizadas. Expressava-se rigorosamente no campo da esquerda partidária e social (sociedade civil organizada voltada a disputas por "aprofundar e radicalizar a democracia e promover direitos").
Sobre a minoritização pentecostal, é possível dizer que ela foi "oportunizada" pelo processo de liberalização do regime militar, que desencadeou uma crescente arregimentação de aspirações e forças democratizantes em fins dos anos 1970, abrindo a possibilidade de uma discreta politização no campo pentecostal e evangélico-conservador (as chamadas igrejas históricas), até então marcado pelo "apoliticismo" (na verdade, governismo, através de uma leitura amplamente difundida de que o cristão deve "obedecer às autoridades, pois foram constituídas por Deus"; mas, expresso em termos individuais, com poucos casos de utilização dos templos para a promoção de quaisquer candidaturas ou sancionamento de lideranças ou projetos políticos). Esta politização foi marcada por três características: (a) foi minoritizante e pluralizante - afirmou a legitimidade de uma voz evangélica na política e na sociedade ao lado de tantas outras que emergiam em defesa da democracia; (b) foi corporativa - tratava-se de despertar e mobilizar "os evangélicos" para reivindicarem seus direitos como categoria sociorreligiosa e eleger representantes em tudo a si semelhantes, como porta-vozes e mediadores políticos; (c) foi pragmática e amplamente conservadora ideologicamente - não elaborou uma ética nem um programa político próprio, nem se afirmou no contexto de nenhum dos partidos políticos existentes, em particular, embora tenha resistido a apoiar partidos de esquerda, resistência que, no entanto, não baniu essa possibilidade (como se viu já nos anos 1990, em alguns estados, e nacionalmente, a partir de 2002).
Esta minoritização envolveu dois momentos fundamentais: (a) a emergência pentecostal-evangélico-conservadora; (b) a constituição de um ator coletivo, "os evangélicos" ou um povo evangélico, já articulando algumas bandeiras programáticas, notadamente expressas em termos de defesa de temas como família tradicional, resistência à equalização nas relações de gênero, rejeição dos direitos LGBT+, concorrência com as políticas de cultura defendidas pelo movimento negro e as comunidades de terreiro. "Povo evangélico": construção de um conjunto marcado pela dispersão, mais invocação do que representação, sinalizado pela plausibilidade de uma estratégia eleitoral bem sucedida (momento "a", acima), definido no registro da política, mas apelando a uma massa de fieis heterogênea e em processo de transformação no contexto de uma curva ascendente de conversões ao pentecostalismo e de impacto pentecostalizante nas igrejas históricas. Povo evangélico como efeito da democratização e da pentecostalização do protestantismo.
Há um paulatino reconhecimento entre os/as estudiosos/as da religião de que, no caso brasileiro, mas também em outros (por razões distintas, como na Colômbia do processo de paz, ou no Peru da reação à educação sexual nas escolas), os rumos da democratização e da pluralização social empoderaram discursos e movimentos que foram identificados pelos pentecostais e evangélicos conservadores como ameaçadores àquela pauta incipiente dos anos 1990, a pauta da minoritização e do povo evangélico. A percepção da não-coincidência entre o povo evangélico constituído em nome de uma crítica do caráter minoritário ("excluído", "discriminado", "ignorado") dos evangélicos (bem entendido, destes setores do campo protestante que protagonizaram a minoritização) levou a uma crescente indisposição, no âmbito da representação política, contra outras minorias e contra "a esquerda" que as apoiaria sem reservas. Setores da direita evangélica, a partir do parlamento e de lideranças de grandes igrejas ou denominações pentecostais e evangélico-conservadoras, começam a difundir uma narrativa de que crescia uma ameaça sinistra contra a civilização e os valores cristãos, por parte de minorias ativas, seculares e não-cristãs, com aliados cristãos (o ecumenismo, a teologia da libertação, e os evangelicais - um segmento surgido no campo evangélico-conservador no início dos anos 1970, organizado globalmente no chamado Movimento de Lausanne, e caracterizado por um intento de promover uma articulação orgânica entre evangelização, cultura [contextualização] e ação social). Em torno dessa reação conservadora constitui-se o discurso da "maioria cristã", assentado no sucesso da estratégia eleitoral dos pentecostais e na paulatina aproximação destes com setores intelectualizados da direita evangélica pastoral (batistas e presbiterianos, em especial).
Levaram-se alguns anos para o cristianismo da libertação voltar a afirmar-se em seus próprios termos, provocado pela ascensão largamente imprevista ou minimizada em seu potencial de mobilização da direita evangélica e católica contra "a esquerda". À medida que as disputas se tornaram mais antagonísticas entre a direita religiosa e política e "as minorias e a esquerda", designadas como inimigas a ser combatidas sem trégua, explicita-se a convergência entre os liberacionistas e, agora, crescentemente, os evangelicais, expulsos do campo evangélico como proto-liberacionistas ou renegados do mundo evangélico-conservador. Utilizando-se das conexões institucionais criadas pelas redes de pastoral católicas (que incluíam a própria CNBB, em alguns momentos críticos) e pelas redes ecumênicas (formadas pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, minúsculo no número de denominações filiadas, mas incluindo a CNBB, e por dezenas de organizações de serviço ecumênicas, espalhadas pelo país e muito bem articuladas a organismos e redes transnacionais e globais), o cristianismo da libertação foi sendo provocado a pronunciar-se. E respondeu, especialmente em torno do golpe do impeachment e da conjuntura eleitoral de 2018, 2020 e 2022. Quanto mais tomou corpo a reação conservadora, mais explicitamente o campo da libertação (de novo, católico, protestante ecumênico e evangelical) se afirmou. Em seu estilo de sempre, o discurso "de resistência" que se foi articulando abrigou-se no campo dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada, não se apresentando como discurso eclesial nem como representação religiosa cristã.
Mas isso foi mudando. A partir de 2016, com o início do governo Temer, o avanço da reação conservadora na direção do que poderíamos chamar, de empréstimo à análise connollyana da coalizão de sustentação do governo de G.W. Bush (ver Capitalism and Christianity, American Style, de 2008), o discurso cristão da libertação ampliou sua interpelação (assumindo abertamente as políticas de identidade, o pluralismo e o "direito à diferença" em sua visão de democracia e de "diversidade" cultural, sexual e de gênero, bem como a defesa do meio ambiente - teologicamente e em termos de engajamento prático). E protestou contra a escalada do controle conservador sobre as igrejas evangélicas, que assumiu crescente anticomunismo, antiminoritarismo e pautas do neoliberalismo, e contra a rearticulação do integrismo católico numa aliança entre tradicionalismo, carismatismo e liberalismo conservador no interior da Igreja, em reação ao papado de Francisco e às ameaças da "ideologia de gênero", da perda de fieis e do enfraquecimento da autoridade eclesiástica na sociedade. Se entre os evangélicos, a voz pública das igrejas foi "sequestrada" pela direita, fechando o cerco no controle das mídias e das estruturas denominacionais contra os moderados, os evangelicais e os ecumênico-liberacionistas, entre os católicos, a voz da hierarquia foi desafiada de modo cada vez mais aberto pela "nova" direita católica, chegando a momentos de confronto aberto durante o Sínodo da Amazônia, a pandemia da Covid-19 e a campanha eleitoral de 2022.
A afirmação do campo que chamo aqui, com Löwy, de cristianismo da libertação, é pois um efeito relacional da conjuntura de crise hegemônica dos anos 2014-2022. Em primeiro lugar, antagonismo entre "esquerda" e "direita" cristãs (longe os tempos em que se tratava de "liberais" e "conservadores"; o antagonismo dos últimos anos reacendeu a linguagem ideológica de esquerda/direita no interior das igrejas e em seu discurso público). Em segundo lugar, antagonismo entre bolsonarismo (como discurso que articulava a direita secular e a religiosa) e "campo democrático" (como discurso que articulou, até 2021, apenas a esquerda derrotada, mas começou a incluir outros setores de centro e direita democráticos a partir do retorno de Lula à cena eleitoral). Antagonismo é manifestação dos limites de uma ordem instituída - limites de sua hegemonia, limites de suas fronteiras enquanto produção de lutas passadas que legou um histórico de exclusões, limites da capacidade de interpelação e integração de demandas sociais por essa ordem, limites definidos pela emergência de novas demandas (reivindicações concretas, expressões de inconformismo, reações, desafios à gestão da ordem, críticas a diversos aspectos do funcionamento da sociedade, emergência de novos sujeitos reclamando invisibilidade ou injustiças sofridas).
O antagonismo não tem dono. Trata-se de um processo pelo qual vacilam os pilares da ordem, emerge a contingência dos começos, surgem novos contendores até então derrotados ou invisibilizados. E produz-se uma divisão do social em dois grandes campos, reproduzida fractalmente em muitos lugares sociais (a imagem não é exata, porque não se trata de replicação do mesmo conflito, dos mesmos conteúdos e atores, mas é apta do ponto de vista da estrutura do processo), e atraindo para cada polo grande parte dos atores e demandas públicas, reposicionando-os. O antagonismo arrasta "gravitacionalmente" os atores, em função da centralidade assumida pelo imperativo de manutenção da ordem por uns e de desafio à mesma, por outros. Neste caso, há dois, não um, momentos antagonísticos na conjuntura vivida pelo Brasil nos últimos anos: o da crise do impeachment, desdobrada nos governos Temer e Bolsonaro; e o da reemergência de Lula no cenário político brasileiro, que leva a sua candidatura e vitória eleitoral em outubro de 2022 (com desdobramentos ainda pouco previsíveis e não necessariamente contempláveis por esta análise, mas capaz de reunir em torno de si uma ampla frente redemocratizante).
Com a crise de hegemonia e a manifestação da divisão antagonística, instaura-se uma nova disputa pelo "povo" da ordem que se quer manter, restaurar ou transformar. É aqui que a minoritização pentecostal encontrou seus limites e o jogo se tornou mais ambicioso. Frente ao afrouxamento da força hegemônica do lulismo, a partir da crise do impeachment, o cenário de aspirantes se tornou mais aberto e mais complexo. Numa crise de hegemonia, nenhum dos atores tem força suficiente, quer para manter as coisas como estavam, quer para ultrapassar o status quo e implantar uma nova ordem estável. Somando-se a isto dependências de trajetória brasileiras, como a política de coalizões característica de todo o período pós-1930 na política institucional, e pode-se compreender por que é possível falar de aspirações hegemônicas da direita cristã, sem ter que argumentar em favor de uma hegemonia dos evangélicos ou dos católicos, ou mesmo de uma hegemonia religiosa na política. Donde a maior plausibilidade do amplo arco de micropoderes religiosos (e laicos) que se abrigou no discurso da "maioria cristã".
Apesar dos conteúdos particulares espetacularizados no debate midiático (incluídas as novas mídias) e parlamentar, o discurso da "maioria cristã" não pode ser confundido com um discurso especificamente religioso. Ele é, primeiramente, híbrido, "cristão" significando tanto o componente "demográfico" de sua composição - maioria demográfica de cristãos, calibrada por meio dos Censos, das pesquisas de opinião e das estatísticas eclesiásticas, para se transmutar em indicador de um "povo brasileiro" legítimo - quanto o componente "cultural" de sua interpelação - todas as pessoas e formações religiosas que se reconhecem diretamente identificadas com o cristianismo, quer em termos de fé, espiritualidade ou cultura religiosa. A maioria cristã brasileira é, assim, o nome de um contingente formado por católicos e evangélicos praticantes e não-praticantes, espíritas kardecistas, pessoas de múltipla pertença religiosa (inclusive do campo afrobrasileiro), direita secular tradicionalista (que reconhece no cristianismo uma matriz de ideias a ser preservada) e neoliberal e, por uma extensão teológica e pragmática, via o conceito de "legado judaicocristão", judeus. Máquina de ressonância capitalista-cristã (ou, em termos mais provocativos e menos precisos, repetição da máquina de ressonância evangélico-capitalista de Connolly): não se trata de programa comum, práticas comuns, objetivos comuns, mas de múltiplas e assimétricas ressonâncias de significantes de cada elo da cadeia de equivalências da reação conservadora - como família, valores, liberdade, antiestatismo, guerra cultural, ideologia de gênero, autoridade, ordem - uns sobre outros.
A dimensão "cristã" dessa maioria remete, portanto, a um significante vazio, que permite que pentecostais que nunca foram maioria e nunca se sentiram identificados com a "matriz católica" da cultura brasileira, estejam entre os mais vocais defensores da tal maioria e, que neste exercício, distingam entre a missão evangélica (conversionismo) e a política evangélica (aliança pragmática com quem quer que se reconheça interpelado pelo cristianismo, mesmo que não seja um/a pessoa cristã autêntica em termos de prática de fé). Permite também que católicos tradicionais, claramente inconciliados pela "anarquia" pentecostal, se vejam aliados de primeira hora destes em defesa dos "valores da família, da liberdade e da autoridade"; que católicos carismáticos se vejam próximos a seus "irmãos evangélicos", ainda que resistam precisamente à sangria de fieis produzida diuturnamente pelo proselitismo pentecostal; e que setores reacionários do campo protestante histórico, fundamentalmente reformados (batistas e presbiterianos, mas em menor escala em outras igrejas históricas, inclusive as luteranas) reconheçam na estratégia de maioria uma possível expressão de um discurso de domínio cristão sobre a sociedade, o reconstrucionismo. Sendo o discurso da maioria cristã um construto relacional resultante da ativação do antagonismo no Brasil da conjuntura pós-impeachment, a cadeia de equivalências que o constitui mostrou-se expansiva e "interreligiosa" o bastante para que a inclusão numa maioria (portanto, num povo, o povo brasileiro do bolsonarismo) fosse mais vinculante do que a materialidade propriamente doutrinária e ritual de sua adjetivação "cristã".
(Um ponto que tem sido enfatizado por alguns autores e comentaristas simpáticos ao campo evangélico é o do mau conhecimento da identidade, motivações e dinâmica relacional evangélica. Como se a maior ou menor capacidade de inclusão ou de interpelação dependesse de um "conhecimento" do outro em sua "intimidade" identitária. Esta percepção tem levado a cobranças à esquerda e a críticas contra sua incapacidade de "entender" o mundo evangélico que é, literalmente, correta, e estrategicamente infantil: o que aproxima ou distancia atores e suas demandas em processos políticos não é o conhecimento profundo de uns pelos outros, mas a intensidade do antagonismo a que se veem impulsionados e às lógicas de construção de equivalências entre suas demandas, que nunca estão predeterminadas, mas se definem ao sabor das disputas. Conhecer o outro tampouco impedirá de perder seu apoio quando circunstâncias da implementação de um projeto ou de resposta a desafios de adversários podem levar a discordâncias, distanciamentos e oposição. É importante, no processo de construção de equivalências, interpelar diferentes demandas, identidades e atores, e conhecê-las bem ajuda a quem se propõe a representar o eixo de construção da equivalência - ou seja, a força que se pretende capaz de hegemonizar a cadeia de equivalências. Mas esse "conhecimento" não é nem garantia de atração nem de preservação da presença do outro numa formação hegemônica. Porque não é por identidade que se constituem cadeias de equivalência - ou seja, formações hegemônicas, "coalizões", "alianças". É pelas dinâmicas do agonismo - em contextos democráticos - e do antagonismo - em contextos de crise hegemônica -, que expõem a natureza relacional, incompleta e contingente - portanto, instável, no longo prazo - de toda identificação, de toda inclusão ou participação em uma formação hegemônica.)
As campanhas eleitorais de 2018, 2020 e 2022 criaram as condições para a "formalização" de um antagonismo religioso no cenário brasileiro. De um lado, uma fronteira entre direita e esquerda cristãs, compondo cada polo um "discurso" e um "projeto" inconciliáveis, numa formação amigo/inimigo até então somente experimentada no desfecho do golpe militar de 1964 e no processo de enfrentamento do autoritarismo (guerrilha e abertura). De outro lado, a intensificação de uma disputa sobre os rumos da minoritização evangélica e católica (no primeiro caso, uma disputa entre direita pentecostal e evangélico-conservadora, de um lado, e esquerda ecumênica e evangelical, de outro; no segundo caso, uma disputa entre o controle hierárquico da Igreja em alinhamento com o papado de Francisco e setores do integrismo e do movimento carismático contrários às pautas ecológica, de complementaridade de gênero e de apoio às críticas ao neoliberalismo). Esse antagonismo reacendeu disputas dos anos 1970 e 1980 entre liberacionistas e outros setores das igrejas, mas acrescidas de um esforço organizativo novo, por parte de grupos cristãos LGBT+, afrodescendentes, ambientalistas, núcleos religiosos no interior de partidos de esquerda, mobilização de redes ecumênicas, evangélicas, católicas, espíritas em torno do pluralismo (como regime de legitimação das diferenças e de "respeito" a elas como formas de vida coletivas e de autonomização individual). A radicalização eleitoral e a penetração da lógica antagonística do bolsonarismo no interior das igrejas sacudiu profundamente o ambiente eclesial e provocou reações tanto dos grupos-alvo dos ataques da direita religiosa e secular quanto, na última conjuntura eleitoral, de setores moderados das igrejas, alarmados com o nível de tensão e agressividade disseminadas nas comunidades.
O pós-eleições lega, portanto, uma bifurcação em processo de institucionalização (e não de relaxamento e esmaecimento) entre cristianismo da libertação e, agora, maioria cristã. Os resultados quase meio-a-meio do processo eleitoral mostram a profundidade da clivagem e a durabilidade dos alinhamentos que se produziram ao longo dos últimos anos. No interno do campo evangélico, está selada a aliança entre dominionistas pentecostais e reconstrucionistas de direita históricos, versus a aliança entre evangelicais, ecumênicos liberacionistas e dissidentes pentecostais. No interno do campo católico, há uma disputa entre múltiplas correntes conservadoras, moderadas/"progressistas" e liberacionistas, num cenário em que relativiza-se a força aglutinadora da hierarquia e abre-se a disputa pelo legado católico, em plena transformação em função do impacto de perda sistemática de fieis. No externo das disputas públicas, duas tendências: (a) consolidação do cenário de religião pública, isto é, de um contexto de mobilização sociopolítica da religião por parte de minorias religiosas e, em menor grau, da institucionalidade oficial das religiões, que transporta às esferas públicas das instituições estatais e da sociedade civil um embate em torno das aspirações de influência do "povo da religião", abrindo-se a uma conflitividade e contestação diretas por parte de setores religiosos e seculares opostos; (b) incorporação dos atores principais do conflito político e religioso em cadeias de equivalência por enquanto remissíveis ao campo de disputas forjado no processo eleitoral e que se pretende reposto no cenário de formação do novo governo e da nova oposição.
Este cenário, possivelmente, coroa o momento populista brasileiro (remeto aos trabalhos de Chantal Mouffe sobre o assunto, por exemplo, Por um Populismo de Esquerda, de 2018). Da capacidade de estabilização hegemônica do novo lulismo dependerá o desfecho da crise hegemônica em que está imerso o Brasil desde a proclamação dos resultados da eleição presidencial de 2014. Esta estabilização, se conquistada pelo novo lulismo - uso o termo frouxa e descritivamente, para designar que se trata de uma renovação do lulismo por via eleitoral, e de uma possível reinvenção do lulismo como "populismo de esquerda", pela ampliação ainda mais abrangente da coalizão formada no período 2003 a 2015 (quando começa o seu desmonte, desde o início do segundo mandato de Rousseff) - encerrará o momento populista e nos levará a um período de "normalização" hegemônica, quer na forma de uma nova guerra de posições, quer na forma (improvável, a meu ver) de um enfraquecimento das oposições e uma consolidação hegemônica de mais largo prazo.
Tudo é muito incipiente e incerto ainda. Mas pelos próximos anos ainda se verão e sentirão os efeitos da cristalização do embate entre os campos do cristianismo da libertação e da maioria cristã. Se isto nos levará a uma euroamericanização do protestantismo e do catolicismo brasileiros, o tempo dirá. Segundo a experiência europeia e norte-americana, desde o pós-guerra se delineou de modo permanente uma diferenciação eclesial, ao mesmo tempo teológica, pastoral e ideológica entre um cristianismo "liberal", "social" e "pluralista" e um cristianismo "tradicional", "antimoderno" e "politicamente conservador", com múltiplas expressões mais e menos institucionalizadas, ao longo do continuum entre essas duas designações. Houve impactos nas igrejas. Houve defecções. Houve acirramento de disputas por liderança "profética" e "carismática" (em termos weberianos e bourdieusianos). Houve reagrupamentos político-teológico-pastorais. Se a radicalização dos bolsonaristas cristãos tiver ajudado a reforçar essas distinções, estaremos no caminho de maior pluralização do campo cristão, seja na direção do que Casanova chama de denominacionalismo global, seja no sentido de maior pluralização à Berger, seja no sentido de uma minoritização de todo mundo deleuzo-connollyana. Ou outra coisa a descobrir... Mas é certo que ainda não se chegou ao desfecho da disputa pelo povo-cristão-na-política. Por enquanto não será mais o povo-da-maioria-cristã. Mas o cristianismo da libertação nunca ocultou tratar-se de uma proposta de cristianização do mundo (hegemonia), só que baseada numa enorme abertura do conceito de "cristianização" como dispersão, morte e ressurreição do verbo cristão no mundo, para além de qualquer referência religiosa, apenas assentado no primado da justiça e da solidariedade (amor ao próximo) como expressões do amor a/de Deus. Nada longe do que Derrida chamaria de disseminação.
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