PL do estupro e disputas religiosas

O Brasil assiste estarrecido a mais uma manifestação de dogmatismo impiedoso e socialmente irresponsável, a partir do Congresso, com o projeto de lei que propõe a criminalizacao de mulheres que abortem, mesmo em condições que, hoje, seriam perfeitamente legais. A bancada evangélica é uma das principais defensoras dessa proposta cruel com meninas e mulheres abusadas, que seriam obrigadas a parir filhos que não desejaram, com homens que não amaram, e "doarem" esses seres humanos para adoção, caso, após todo o assedio moral que sofreriam durante a gravidez, não queiram criar esses filhos.
Vamos por os pontos nos "i". Isso se chama reacionarismo da pior qualidade. Não tem qualquer fundamento religioso. Querem ser contra o aborto em qualquer situação? É um direito que lhes assiste. Mas não imponham seus preconceitos grosseiros e desinformados sobre a sociedade inteira.
É preciso deixar uma coisa bem clara: o mundo hoje é muito melhor conhecido do que há algumas décadas e certamente do que conheciam as gerações anteriores. E a gente sabe muito bem o que é a história e a identidade dos evangélicos. Conhece historicamente, conhece sociologicamente e conhece teologicamente (porque teologia, hoje, não está só nos seminários confessionais). OK. E o que conhecemos? Primeiro, conhecemos que o que se chama de evangélico no Brasil, por mais alarido que façam os/as pastores/as midiáticos/as ou pregadores/as de púlpito ou de redes sociais, nem é puro sinônimo de cristão, nem de protestante. Evangélico é uma identidade específica dentro do mundo cristão, teologicamente conservadora e sociopoliticamente diversa. 
Há uma vertente evangélica que é teologicamente aberta e sociopoliticamente comprometida com valores e práticas transformadoras, de justiça e pluralismo. Ela é minoritária. Mas o que devemos chamar claramente de direita evangélica - teologicamente conservadora (incluindo uma ampla franja abertamente fundamentalista [e isso é ao mesmo tempo uma identidade definível e uma acusação]) - também é uma minoria. Intolerante, autoritária, arrogante e irresponsável (porque imagina que sua cabeça fechada é obtusa consegue dar conta, por obra de uma suposta sintonia con a Bíblia e com a vontade divina, da realidade e complexidade da vida.). É uma minoria poderosa, que tem sequestrado, há uma década, a voz evangélica no Brasil.
Conhecemos que há múltiplas correntes cristãs e grande parte delas tem leituras perfeitamente legítimas de sua fé, mesmo que estas destoem do que a direita evangélica considera a "verdade bíblica" ( ou seja, sua opinião travestida de conhecimento bíblico sério). 
Não se trata de ideologizar o debate. Ele já foi ideologizado pelos pregadores e teólogos conservadores que (a) nomeiam qualquer oponente de "esquerda"; (b) se aliam ao que este país tem de politicamente mais asqueroso para dar apoio à suas propostas; (c) distorcem deliberadamente a realidade sobre o abuso sexual, o estupro e as condições de vida de mulheres abusadas e de crianças nascidas sem pai e com mil razões para nunca ter qualquer noção saudável de paternidade (a menos que, por sorte, alguma figura de paternidade as acolha), e tornam seus argumentos falsificados base para suas propostas indecentes.
A grande diferença entre as propostas "de esquerda" na área da sexualidade. do gênero e dos direitos reprodutivos é que elas nunca são impositivas. Ninguém é, em qualquer dessa propostas, obrigado/a a fazer qualquer coisa relacionada a esses temas. Trata-se de linguagens calcadas em argumentos de saúde pessoal e pública e de direitos. Não quer? OK. Quer acreditar na moralidade tradicional? OK. Quer impor sobre suas filhas ou mulheres as justificativas para rejeitar o aborto? OK. Agora, não tentem impor suas convicções sobre a maioria da sociedade que não concorda com vocês. Assumam seu sectarismo. Não queiram por verniz de saber ou de compromisso com valores. Vocês nem são os donos da Bíblia, nem da moral, nem da política. Deixem a maioria decente da sociedade em paz e não falseiem o que já é altamente restritivo na legislação brasileira sobre o aborto: o direito estabelecido já é bem restritivo, mas há ampla aceitação disso na sociedade; a grande maioria das pessoas admite o aborto como uma realidade e uma decisão altamente dolorosa para as mulheres (raras são as pessoas que falam de aborto como método contraceptivo) e que não é tomada sem profunda reflexão e pesar; a Bíblia sempre precisa de interpretação, tendo sido escrita há mais de 2000 anos, em culturas e contextos históricos profundamente diferentes dos atuais, não sendo legítimo, de acordo com nossa Constituição, usá-la como argumento de direito e de ordenamento político. Não somos uma teocracia. Nem a maioria absoluta dos cristãos neste país quer isso. Reacionários "cristãos", fiquem na sua, reconheçam seu lugar. Vivam como queiram mas deixem viver e decidir livremente quem não reza por sua cartilha.

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