Sobre as diferenças religiosas internas e a identificação política

 Em época de eleições, como as de 2022, ainda mais com a estruturação de uma fronteira política que se traduz nos dois principais candidatos (Lula e Bolsonaro), bem como nas tentativas de desfazê-la por meio de propostas de "despolarização" ou de "terceira via", não é incomum que cada parte envolvida procure "descolar" segmentos da população para evidenciar apoios potenciais e reais. No Brasil das últimas décadas, a filiação religiosa é, definitivamente, parte destas estratégias, por forças internas e externas. Três procedimentos predominam nessas dinâmicas de disputa do voto, que ao mesmo tempo expressam e impactam as identificações religiosas: (a) a construção da voz "autorizada" ou "oficial" da comunidade de fé; (b) a construção de alianças táticas ou coalizões circunstanciais entre forças intra e extrainstitucionais; (c) a emergência de vozes dissonantes internamente às comunidades de fé.

A diferença interna é uma marca de todas as identidades coletivas. Estas nunca coincidem com os marcos institucionais que as estabilizam e pretendem representar e regular. Elas nunca se originam como movimentos unificados ou inteiramente consistentes, coerentes, coesos. Elas não se mantêm idênticas a si mesmas ao longo do tempo nem em contextos diferentes. Há uma frequente instabilidade da fixação de uma identidade coletiva que decorre de suas origens (não originárias, tendo em vista que jamais emergem de um zero, de um lugar vazio, sem conexões e sem "passado"), de sua trajetória (por definição relacional e contingente) e pelas múltiplas circunstâncias que experimenta em cada momento dado. Mas há fixação. As mesmas condições que permitem a manifestação de diferenças também permitem as estratégias de estabilização de sentidos e rotinização de práticas em espaços de identificação coletiva. A fixação de sentido, entretanto, recebe diferentes "leituras". Por exemplo: a reafirmação de uma verdade originária que estaria ameaçada; a definição de uma voz autorizada que interpreta e gestiona as relações e fala em nome de todas as pessoas e grupos "participantes"; a denúncia de grupos, agendas e práticas desviantes como uma ameaça à ordem, à verdade e à segurança da comunidade identitária; a imposição de uma ortodoxia que restringe disciplinarmente as possibilidades de dissenso e desautoriza a existência legítima de alternativas. Estes são processos que vão muito além das práticas religiosas. Nem se restringem a elas, nem são um transbordamento da lógica religiosa para outros regimes de práticas. A fixação de sentido, ou seja, a construção de identidades estáveis e reguladas, em todo caso, nunca se dá de modo pleno nem definitivo. Toda ortodoxia, toda liderança, toda ordem estão permanentemente abertas a incompetências, promessas não-cumpridas, frustrações de objetivos e contestação de concorrentes/dissidentes ou de de adversários/inimigos.

Voltemos aos três procedimentos identificados acima. Eles são bastante fáceis de identificar na dinâmica organizacional das comunidades de fé e nos processos de mobilização política das mesmas. Nestas eleições não é diferente. A construção da voz autorizada é um projeto que tem diferentes níveis de análise possíveis. Em termos conjunturais, ela se manifesta claramente do lado bolsonarista da fronteira, pela articulação de um discurso que apela à maioria (cristã ou evangélica, conforme o público e a ocasião), que identifica a pluralidade de formas de pensamento e de formas de vida como ameaças (o "comunismo", a "ideologia de gênero", o "feminismo", a minoria LGBT+, as "minorias", a "esquerda" são alguns dos nomes atribuídos - e amalgamados - a essas ameaças); que reativa elementos pré-modernos da identificação religiosa (a aliança entre a "cruz e a espada", de implicações militaristas, coloniais e imperiais; a intolerância agressiva com os dissidentes religiosos e os "inimigos da fé"); a associação entre o "trono e o altar", que produz uma versão oficial da religião, apoiada no estado e protegida por este; a confusão entre ortodoxia e controle moral do comportamento, especialmente de jovens e mulheres; a etnicização da identidade religiosa, que produz manifestações de racismo (outras culturas são demoníacas, a cultura cristã, branca e ocidental é a expressão mais fiel da revelação divina, a desigualdade fundamental dos seres humanos é afirmada com base numa certa versão do destino por desígnio divino).

A construção de alianças táticas ou coalizões circunstanciais pode ou não vir associada à construção da voz autorizada. No contexto brasileiro, sim, porque a voz autorizada é, ainda, a voz de uma minoria. Os evangélicos podem ser o fiel da balança do processo eleitoral, podem representar provavelmente mais de 30% da população brasileira hoje, mas são minoria tanto no sentido quantitativo quanto qualitativo. E por isso, precisam ampliar sua interpelação e reforçar suas alianças. 

Quantitativamente, é óbvio que se trata de uma minoria religiosa. Ainda mais quando, numa perspectiva socioantropológica, é uma "população", no sentido foucauldiano, ou seja, uma construção estatística do que, empiricamente, são grupos muito diferentes e historicamente concorrentes entre si, mesmo quando apresentam muitos traços em comum (doutrinaria, ritual e eticamente). Há dezenas de denominações evangélicas, com histórias assentadas no passado europeu e norte-americano; há diferenças marcantes de origem entre históricos de missão, históricos de imigração e pentecostais; há divisões das igrejas - umas surgidas no Brasil, outras trazidas de fora - que distinguem, por exemplo, batistas, presbiterianos, metodistas, congregacionais, em estruturas denominacionais diferentes e opostas; há milhares de igrejas independentes que combinam e transformam fragmentos e práticas de várias origens com novidades localmente geradas por disputas com estruturas estabelecidas ou por "empreendimentos" alternativos. E há diferenças sociodemográficas e espacialidades (rurais, urbanas, etnoculturais) muito variadas no interior dessa grandeza estatística chamada "protestantes" ou "evangélicos".

Qualitativamente, "os evangélicos" são uma formação discursiva do campo conservador protestante, massivamente representada por pentecostais e neopentecostais (do ponto de vista denominacional). Ela não veio a existir sem uma mutação significativa da identidade pentecostal no Brasil, que a transformou em religião pública. Ou seja, em um complexo de identificações, práticas organizacionais e interações sociais e culturais que dependeu inextricavelmente de uma série de investimentos políticos, ou mais simplesmente, da politização da identidade religiosa, de um segmento marginalizado e estigmatizado, mas numericamente expressivo da sociedade brasileira - os pentecostais, os "crentes". Além disso, "os evangélicos" dos últimos 6 a 8 anos são uma minoria dentro da minoria protestante brasileira. Ou melhor, são uma elite teopolítica, uma elite parlamentar e pastoral, com apoio de bases mobilizadas a partir de uma mescla de religião, moralidade e política - em duas palavras, religião pública. Isso destoa significativamente da história dos pentecostais no Brasil e destoa de uma parte importante da história das primeiras gerações de protestantes não-pentecostais no Brasil (os chamados "históricos"). Para que essa força política e cultural evangélica de hoje viesse a existir, uma particularidade intra-protestante se transformou no nome de todos os protestantes, via a recuperação de um termo que, por sua vez, era de apelo geral aos protestantes, mas provinha de um campo específico do protestantismo internacional (que, no mundo anglófono, era identificado como "evangelical"). Internamente, a disputa com o campo chamado evangelical (pronunciado de forma aportuguesada, para distinguir do genérico "evangélico"), que se constituiu nos anos 1970 e disputou com os pentecostais a via de politização (ou seja de religião pública) que deveria prevalecer no contexto das lutas contra a ditadura militar e pela direção da democratização que se intensificou a partir de meados daquela década. Os evangelicais criaram uma voz pública, na Associação Evangélica do Brasil, que teve no pastor Caio Fábio sua liderança mais icônica. Os pentecostais "comeram pelas beiras" e implodiram a AEvB, num contexto de desmoralização de Caio Fábio que envolveu setores de dentro e de fora do mundo evangélico. Os evangelicais foram derrotados pelos pentecostais e se dispersaram por movimentos eclesiais e espaços teológicos. A partir dos anos 1990, foram cada vez mais se aproximando dos setores ecumênicos e liberacionistas do protestantismo e consolidando sua desassociação do projeto agora liderado por pentecostais.

Além disso, "os evangélicos" foi uma construção que envolveu alianças e coalizões. Alianças, em um sentido mais cotidiano, com simpatizantes, não simplesmente da proposta religiosa evangélica (os "amigos do evangelho"), mas mais importante, com forças sociais e políticas afins aos contornos conservadores do discurso evangélico (não esqueçamos: discurso deste segmento específico). Coalizões ditadas por uma dupla circunstância: a necessidade de construir força política (entendida em termos de autorrepresentação e de ocupação de espaços de poder) e a necessidade de aproximar-se de forças ascendentes (guiada seja por um "governismo" de longo pedigree no campo protestante conservador seja por um cálculo eleitoral de oportunidades). 

Ocorre que todo esse processo envolve mais condicionantes e fatores não-previstos do que qualquer ator sociopolítico seria capaz de controlar. Numa cultura historicamente fissípara, marcada por múltiplas e sobrepostas cisões, em todas as tradições eclesiásticas protestantes, o discurso dos evangélicos politicamente construído já nasceu com adversários internos - "os ecumênicos" e "os da missão integral" (ou evangelicais). E acumulou outros adversários dentro e fora do mundo religioso, até que, no seu momento de maior audácia - o descolamento da coalizão lulista, em apoio ao impeachment de Dilma, e sua decidida aproximação de Bolsonaro desde a construção de sua candidatura - "os evangélicos" passaram a se apresentar em nome da "maioria cristã", em aliança com católicos tradicionalistas, direitistas sem maior identificação religiosa e direitistas de outras religiões. Tal aliança definiu-se simultanea e estruturalmente em relação à nomeação de inimigos a combater e banir da cena pública: esquerdas, feministas, movimento LGBT+, academia secular (ou seja, setores da academia que contestavam abertamente os "valores" e as "verdades" definidos como inegociáveis pela formação evangélica). A sobreposição de intolerância religiosa e antagonismo político transformou o discurso evangélico em um caso típico dos discursos de extrema direita já identificados na Europa, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, facilitando, inclusive, uma deliberada estratégia de reforço desses laços em escala transnacional.

Mas todo esse processo desencadeou um realinhamento paulatino das dissidências evangélicas, facilitado pela mesma midiatização a que "os evangélicos" se somaram desde os anos 1990. O efeito das novas mídias (ou das mídias sociais) foi o de multiplicar as vozes reivindicando um pertencimento evangélico e questionando as versões hegemônicas (o termo é exatamente este!) no campo da religião pública. As dissidências não só lançaram mão da publicização - trazendo para a visibilidade midiática suas idiossincráticas leituras ou as tentativas de rearticulação das forças internamente derrotadas nas décadas anteriores. A resistência ao processo de impeachment de Dilma Rousseff, a pandemia, as eleições municipais de 2020 e a oposição ao governo Bolsonaro, tornaram-se ocasiões para reavaliações do apoio dado ao golpe de 2016 e à eleição de Bolsonaro em 2018, para reagrupamento de posições que foram dispersadas pela conquista da voz oficial do mundo protestante pelos "evangélicos" como elite teopolítica parlamentar e pastoral, para a construção de alianças e coalizões anti-bolsonarismo e anti-direita evangélica.

Óbvio que esses processos, descritos assim, em sobrevoo e com um distanciamento das questões urgentes que a disputa cotidiana suscita sempre, nunca foram vivenciados assim pelos atores. Os atores estão situados e, mesmo quando têm outros pertencimentos além da identificação religiosa, se movem ao sabor das circunstâncias e disputas. Não podemos desconsiderar um quantum (sempre a determinar contextualmente) de adesão, de afeto, de identificação sincera com as bandeiras de cada lado. Estes investimentos afetivos e cognitivos são o que produz a liga, as solidariedades, o sentimento de pertencimento a uma causa e de antagonismo a outras. O desfecho das lutas sociais, historicamente, define com quem estava a "verdade", atribui responsabilidades, nomeia réus. Mas não há porque atribuirmos artificialidade, astúcia, instrumentalização e manipulação de forma indiscriminada a qualquer lado. Identificação, não apenas cálculo instrumental, é o terreno mais eficaz da politização.

E parte desses jogos de identificação tem a ver com a interpelação a que as diferenças internas à identidade coletiva se manifestem politicamente. Ou melhor, convirjam em agrupamentos amigo/inimigo ou amigo/adversário, por meio dos quais processos de disputa política ocorrem. Os meios de articular essa dupla localização - dentro e fora da religião - são igualmente complexos e contingentes. Os aliados, os comilitantes, os amigos políticos são sempre e em toda parte um grupo móvel e mutante e, embora se possa atribuir aos mais longevos as noções morais de coerência e compromisso, não há nenhuma razão histórica para se dar crédito incondicional a tais narrativas. Porque nem as diferenças religiosas internas, nem as identificações políticas constituem ou expressam núcleos duros de identidade e pertencimento. Por mais crentes, por mais ideologicamente identificados, por mais intelectualmente convictos que sejamos, somos seres de história, linguagem e desejo. Deus quis que fosse assim! Achou muito bom. E quando não deu certo, suscitou profetas de todo tipo para encher o saco dos crentes, ideólogos e intelectuais e lembrar-lhes de que ninguém tem a palavra final. Nem a primeira.

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