Conselhos não pedidos a eleitores não identificados

Você vai votar no atual presidente porque seu pastor, sua pastora, seu bispo, sua bispa, missionários, oficiais, obreiros, irmãos e irmãs muito cheios/as do Espírito estão dizendo pra você que esta é a única candidatura "de acordo com a Bíblia"? OK. Primeiro, você tem o direito, numa sociedade democrática – e SÓ numa sociedade democrática – de pensar assim, de aceitar essas posições/opiniões/imposições, de fazer essa escolha.
Segundo, pode ser que você esteja sendo grosseiramente manipulado/a por sua confiança nessas pessoas. Neste caso, sua escolha continua sendo garantida numa sociedade democrática – e SÓ numa sociedade democrática. Mas, neste caso, sua escolha abre mão de duas coisas fundamentais: (a) sua liberdade de escolha, porque alguém está lhe negando não só o direito a ter uma opinião diferente como a poder escolher livremente o que contraria a posição dessa(s) pessoa(s); (b) sua integridade, porque você está se deixando enganar e assumindo a defesa, quem sabe, intolerante, de posições alheias e errôneas ou pior: mal-intencionadas e oportunistas.
Terceiro, NENHUM dos argumentos utilizados pelas pessoas que têm assumido as posições acima e guiado, orientado, mandado, imposto essas posições sobre seus fiéis ou irmã(o)s de fé, é 100% bíblico, nem 100% ético, nem 100% sincero. Você está errado(a) e seus líderes ou influenciadores estão errados(as)! Vou ser rápido. Quem quiser mais pra entender, é só pedir, que virá. 
O argumento de que existe um modelo bíblico de exercício do poder: há uma grande diferença na Bíblia entre as narrativas sobre os governantes - reis e sacerdotes (já que nos tempos bíblicos, em toda parte, sem exceção, religião e política eram uma coisa só) – e a avaliação profética dessas experiências. Praticamente todos os reis bíblicos são encontrados em falta em quesitos como justiça, cuidado com os vulneráveis (na linguagem bíblica: os órfãos, as viúvas e os estrangeiros), garantia da paz e da vida, devida distinção entre seus interesses e os do Deus bíblico (segundo o Pacto celebrado com Israel). Depois do evento Jesus-como-o-Messias, a comunidade de fé deixou de ser um povo étnico e passou a ser um conjunto descentralizado de "povos, línguas, tribos e nações". No Novo ou Segundo Testamento não há lugar para nenhum governante segundo o modelo bíblico". Com o jugo romano e as perseguições, não havia a quem apelar para garantir a “maioria cristã”. Havia, sim, o pragmatismo da obediência ou a denúncia da Besta (o Estado romano).
O argumento da ameaça comunista: o discurso requentado da direita evangélica e de outras direitas se baseia num fantasma. O que chamam de comunismo, ou não existe mais – a não ser em versões altamente aggiornadas como China e Cuba ou altamente bizarras como Coreia do Norte – ou quer dizer coisas muito diferentes – do socialismo, ao anarquismo e outras propostas que enfatizam a igualdade e a distribuição sobre a propriedade individual e o individualismo ético. Numa sociedade democrática – e SÓ numa sociedade democrática – as diferenças de posição, projeto e interesses podem ser reais e mesmo inconciliáveis, mas o respeito à regra do debate, da participação de todas as vozes implicadas num tema ou situação, à regra da escolha e à regra da alternância, permite que a maioria sempre circunstancial da sociedade expresse suas demandas, desejos e preferências, sabendo que o cenário muda e outras propostas, cedo ou tarde, emergirão. O fantasma do “comunismo” se serve de mentiras (como violação da liberdade religiosa, restrição da liberdade de expressão, imposição de realizar cerimônias religiosas de casais do mesmo sexo, etc.), elitismo (rejeição da ampla participação popular na política e de políticas distributivas), ou alegações teológicas sem fundamento histórico (a de que o comunismo é “anticristão”, ignorando a diversidade de experiências e posicionamentos ao longo da história das igrejas em que pessoas, comunidades e movimentos assumiram posições igualitaristas em nome de sua fé, em boa consciência, e com apoio de suas lideranças pastorais e teológicas). A mentira da incompatibilidade entre fé e posições de esquerda falseia o registro de milhares de exemplos, em várias partes do mundo, em que pessoas de fé assumiram e assumem propostas de construção de propostas baseadas na solidariedade, na igualdade, na compaixão, em aliança com pessoas que não se mobilizam em função de sua fé. Seus líderes mentem ou distorcem a verdade histórica.
O argumento da corrupção: muitos religiosos conservadores sempre apoiaram a corrupção e usaram este discurso de modo tático contra seus adversários. O exemplo de parlamentares chamados cristãos no Brasil, ao longo de décadas, em regimes autoritários ou democráticos, corrompidos e corruptores é inegável. Nos tempos recentes, houve políticos evangélicos e católicos envolvidos em todos os casos de corrupção denunciados no país. Alguns dos atuais paladinos da luta contra a corrupção não escapariam a uma mínima folha corrida de seu passado político ou de suas práticas presentes. Quando denunciados apelam para “fraquezas humanas” e pedem “desculpas por qualquer coisa”, mas atacam seus adversários como corruptos inveterados e imperdoáveis. Dois pesos e duas medidas. Ao mentirem, ao difundirem mentiras, ao silenciarem diante de casos de corrupção em suas fileiras, ao minimizarem a corrupção comparando-a com outra “pior”, essas pessoas mostram que sua indignação é de conveniência, quando não hipócrita. Hipotecar o apoio de toda uma comunidade de fé a uma proposta política, comportando-se como “coronéis” pastorais ou reprimindo e perseguindo vozes dissonantes nas igrejas é uma forma de corromper … as igrejas! Normalmente isso é feito em troca de benesses para igrejas específicas (violando a laicidade do Estado, que não pode beneficiar nenhuma religião sem beneficiar a todas), apoio político para interesses particulares e ocultando-os do público fiel. Corrupção.
O argumento da família: há uma dupla distorção produzida pelo discurso da direita religiosa sobre a família. Primeiro, a tese de que “a família” é a célula-mãe da sociedade, sua unidade básica, o que a mantém unida. Se isso funcionou há milênios, quando a humanidade toda se organizava por laços sanguíneos (famílias ampliadas, tribos, clãs), hoje este é um discurso falso – há, na verdade, distintas esferas sociais que agrupam as pessoas e obtêm sua fidelidade, adesão, identificação, e a família é só uma delas. “Família” também nomeia muitas coisas de uma cultura para outra e o modelo “bíblico” de família nunca foi um só e não corresponde mais à forma como as pessoas vivem em muitas partes do mundo. Que família se defende é tão importante quanto defender a família. E em sociedades plurais e complexas como a nossa, esse familiocentrismo distorce profundamente os problemas sociais e os desafios colocados ao país e à humanidade, hoje. Quem não defende a família? Quem é o dono ou dona da definição correta de família? Em segundo lugar, a outra falsidade da direita religiosa é que seu padrão de família é inconsistente com sua prática – muda de uma direita para outra, em países diferentes, e estimula comportamentos dissimulados, hipócritas ou de sujeição de vozes no interior das famílias. Digam o que dizem mas não façam o que fazem. “Farisaísmo hipócrita” de defesa da moralidade familiar, com comportamentos ocultos que negam essa moralidade.
O argumento do amor, da verdade e da justiça: o cristianismo, o espiritismo, o judaísmo, o candomblé bolsonaristas não são a única, nem a melhor alternativa para a sociedade brasileira e seu avanço é um caso de reação conservadora, ressentida, antipopular, manipulatória e fundada na mentira e na hipocrisia … ou simplesmente inconsistente e incoerente. Suas palavras de ordem “verdade” e “liberdade” escondem, abafam e matam a justiça e o amor, que qualificam tanto a verdade como a liberdade, tornando-as mais exigentes para quem se diz seguidor(a) delas. O aumento das desigualdades, da violência contra os que vivem e pensam diferente, do punitivismo (acompanhado pelo protecionismo dos seus!), do descaso com a catástrofe ambiental que se aproxima celeremente, torna os argumentos conservadores não a salvação, mas o tiro de misericórdia em nobres aspirações humanas, religiosas, “judaicocristãs” que têm nos profetas e nas minorias suas principais defesas e exemplos. Cuidado, você pode estar sendo descaradamente enganado(a), vendido(a) e mal-pago(a). Exerça sua liberdade: pense, avalie, critique, decida pela sua cabeça.

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