Estado laico promove a fé cristã?

A propósito da comemoração dos 94 da Polícia Rodoviária Federal, o governo distribuiu, em agosto de 2022, o livreto "Pão Diário" entre funcionários da PRF. A justificativa é de disponibilizar um recurso para que os servidores enfrentem a pressão e o estresse de sua atividade por meio de recursos espirituais.

Não existe qualquer tergiversação: o governo viola a Constituição ao distribuir material CONFESSIONAL em um órgão público. O pretexto da espiritualidade é espúrio. O protestantismo implícito (explícito?) no material distribuído não é a única maneira religiosa de lidar com situações de stress, pressão, risco, ameaça, incerteza, ambiguidade, vividas por policiais - e olhe que a polícia rodoviária Federal não é exatamente a mais estressante de seu ramo. Há outras religiões e outras espiritualidades representadas entre os policiais rodoviários e na sociedade brasileira e o governo tem a OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL de assegurar a liberdade de religião e de não promover nenhuma delas no país. Chega de sermos ludibriados por direitistas mal-dissimulados, crentes e não-crentes convenientes. A Constituição brasileira não permite e não promove esse tipo de entendimento desviante da liberdade de religião. O que se está fazendo no Brasil, é não começou com Bolsonaro é tomar de assalto a laicidade do Estado brasileiro. E o digo como crente, protestante, anglicano, não-pentecostal. Fiel ao legado missionário dos europeus e norte-americanos que chegaram aqui no século XIX e ao legado das primeiras gerações de líderes e teólogos e teólogas (sim, entre as missionárias e convertidas  brasileiras havia teólogas!).
O que é tomar de assalto a laicidade do Estado brasileiro e, assim fazendo, violar sibilinamente a liberdade de religião no país? 
Primeiro, inventar a tese de que o estado é laico, mas a sociedade é cristã (ou religiosa, na tentativa de trazer o apoio de outras religiões, taticamente). Ora, onde quer que existam estados laicos, com exceções que só provam a regra (pois o mundo não é o quadrante norte-atlântico), a sociedade é majoritariamente religiosa. Nem por isso se cometem as violações que têm sido cometidas no Brasil - sob o olhar conivente do Judiciário (reduto de tradicionalistas, os católicos de velha cepa, e os "neo" do mundo evangélico conservador).
Segundo, surfando na correta admissão do valor cultural, psicológico e socioassistencial das práticas religiosas nas políticas públicas de saúde, educação, cultura. Essa admissão abriu espaço para diálogos e experimentações que o discurso laico da academia, das organizações profissionais e do Estado chamam de "espiritualidade". Assim, aproveitando um caminho já aberto, a direita religiosa tem tentado escancará-lo para promover uma religião, o cristianismo, que nunca foi um só é que agora é nomeado em termos de uma aliança entre fundamentalistas (uso o termo para descrever todos os que defendem que a Bíblia deve ser lida literalmente e a veem como oposta à modernidade, mesmo quando o fazem seletivamente), tradicionalistas, militaristas, antidemocratas, fascistas, patriarcalistas e antimodernistas. Mas sua "espiritualidade", que tem se deixado articular segundo o léxico dos pentecostais e evangélicos reformados conservadores no Brasil, não é nem de longe a "força espiritual" que ajuda na cura, na autoestima, na resiliência de pessoas em situação de vulnerabilidade. É um catecismo penetrando dissimuladamente na brecha aberta por um diálogo entre ciência, religião e política pública que é no fundamental bem-vindo, porque pluralista.
Terceiro, a laicidade está sendo corroída de dentro do Judiciário brasileiro. Há anos que os evangélicos investem em cursos de direito e em concursos públicos para o ministério público e o judiciário. Isso já era batalha ganha entre os católicos. Em comum: estratégia conservadora para minar a interpretação da lei! Dá concordata assinada por Lula em 2010 à decisão do Supremo autorizando o ensino religioso confessional na escola pública no Brasil, passando por rocessos e decisões judiciais que são justificadas em nome de valores religiosos dos juízes e procuradores, há um ataque à laicidade do Estado, QUE É O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL vigente no Brasil: não uma proibição de que a religião seja pública, mas um veto a que o estado promova a religião, qualquer delas (porque não existe a religião em geral, só existem religiões nomeáveis em cada contexto e que estão na cabeça das pessoas quando elas pensam e falam em "religião"). E o Estado brasileiro, desde a redemocratização, em NENHUM momento bloqueou, impediu, embaraçou a prática de qualquer religião. Escutem, evangélicos, vocês cresceram e crescem a saltos quânticos exatamente no pós-1986. E NÃO há nenhuma ameaça à prática da  religião no Brasil, nem da esquerda partidária, nem das minorias feministas, negras, indígenas ou LGBT+. O que há é uma disputa teologico-política patrocinada pelos conservadores para impedir ou retroagir nos avanços de pluralização vividos (vividos, ou seja, realmente vivenciados e não introduzidos artificialmente por meio de governos liberais e de esquerda ou pela academia "atéia").

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