Momento populista na religião?

Chantal Mouffe publicou “Por um Populismo de Esquerda” em 2018. Nele defende a tese de que a conjuntura daquele momento – e ainda não saímos dela! – deveria ser compreendida como um momento populista. Momento, na linguagem de Mouffe, não significa “um período”, curto como um segundo ou mais longo como uma fase ou uma duração. Momento, já havíamos aprendido em seu livro com Ernesto Laclau, seu companheiro de várias décadas, Hegemonia e Estratégia Socialista, significa a estabilização de significantes num discurso. Não só o recrutamento de certos “temas“ ou termos-chave, mas a articulação de palavras e expressões que circulam no cotidiano social, político e acadêmico e que, ao serem colocadas em conexão, proximidade ou relações de sinonímia, metonímia, metáfora, paráfrase, contraste ou oposição com outras, nos permitem perceber a textura, a cara e o sabor/efeitos de um discurso específico. As palavras circulam. Mas quando são requisitadas, investidas, estabilizadas por um discurso, se tornam momentos deste. Isso corresponde a uma prática, já tínhamos aprendido com Foucault. Não é mero “palavreado“, “blá-blá-blá“.

Discurso é um sistema de relações entre diferenças, entre significantes cujo sentido se define por essas relações, que se regem por regras de significação, de ação, de trocas com o que está fora. Mais do que isso, discurso é uma prática significante. Não pode ser descrito nem compreendido apenas no registro linguístico, porque não existe ação nem materialidade que não estejam no sentido, que não sejam no sentido. De um lado, um momento populista é a estabilização de um discurso populista. De outro lado, um momento populista, para não perdermos a dimensão temporal dessa palavra, que é também relevante, é uma conjunção sociossimbólica na qual se pode dizer que vige o populismo, que uma conjuntura da imaginação social e das relações sociais é regida por uma configuração populista. A questão, naturalmente, é o que caracteriza uma configuração populista das relações e da imaginação social. Não é tão óbvio assim e, sobretudo, tem muito pouco a ver com o que tradicionalmente, na mídia, na linguagem política e na academia, tem sido chamado de populismo. A associação com manipulação, demagogia, mobilização de massas para fins diversionistas é parte deste legado o qual Mouffe e Laclau contestam dura e consistentemente.

O momento populista contemporâneo é marcado por uma crise de hegemonia. Momento populista é o nome de uma conjuntura de crise. É portanto, o nome de uma transição, embora esteja longe de estar claro de onde e para onde, ou de quê para quê. Para dramatizar mais a situação, valeria lembrar Gramsci, quando fala da crise de hegemonia como um “equilíbrio catastrófico” ou uma “crise orgânica”. No caso, as principais forças em luta se apresentam, se nomeiam mutuamente, se confrontam, mas nenhuma vence, pura e simplesmente. Antes, quando acha que a guerra está ganha, surgem outras forças que as derrotam e se impõem de modo “arbitral”, ainda que temporário. Prolongamento de um “impasse”, mas, mais do que isso: a ampliação e intensificação do traçado de uma fronteira política, que não só tende a ser percebida como “polarização” como também é vivenciada como uma dolorosa exposição da divisão social – conflito, antagonismo, divergências profundas e inconciliáveis, acentuação de afetos que separam antigas lealdades, amizades e sensibilidades em campos opostos. A despeito de esforços de reconciliação, de desarmamento, de redescrição das situações em termos alternativos, nada parece funcionar. Numa crise desta natureza afrouxam-se todas as referências que regulavam os vínculos sociais até então. Perde-se a confiança “natural” nos outros, quer sejam amigos ou desconhecidos, instituições ou práticas testadas.

O momento populista, Mouffe insiste, tem relação com os efeitos de médio prazo da despolitização que os discursos gerencialista e de “terceira via” produziram, desde os anos 1990. A despolitização – substituição da disputa de projetos de sociedade por propostas de gestão (que implicam sempre em que o que é possível/desejável cabe na ordem existente ou não requerem questionamentos de fundo de, pelo menos, alguns de seus aspectos) – foi acompanhada por uma intensificação dos discursos diferencialistas/identitários. Esses discursos introduziram critérios de antagonismo distintos da clássica opção capital/trabalho ou da díade liberal entre tradicional e moderno. E com eles se marcou uma crescente tensão na capacidade da ordem democrático-liberal-capitalista em incorporar os imaginários alternativos de uma sociedade antirracista, com igualdade de gênero, democrático-pluralista e ambientalmente-orientada. Os discursos multicultural e da inclusão (social) revelaram-se tímidos e cooptáveis. Muito menos do que prometiam. Passíveis de serem normalizados em leis e políticas públicas cujo dissenso possível era o de quanto e talvez como, mas não o quê se quer alcançar.

Neste cenário, dois tipos de antagonismo emergiram como sintoma de uma ordem que resiste em se transformar via despolitização: (a) o antagonismo das identidades raciais e de gênero; (b) o antagonismo das minorias religiosas. Ambos produziram a si próprios e a seus adversários, mas ambos “recortaram” o social de modos diversos. Introduziram novas fronteiras (indicação da emergência de um momento populista!). O primeiro, a fronteira entre o racismo e a patriarquia (rapidamente assimilados a um “complexo” ou uma “constelação” inseparável), de um lado, e a igualdade étnico-racial e de gênero, de outro. O segundo antagonismo introduziu a fronteira entre religiões majoritárias enquanto definidoras da identidade nacional e da espiritualidade legítima para fins culturais e políticos, de um lado, e diversidade religiosa (intramajoritária e interreligiosa), de outro. Só que se trataram de fronteiras introduzidas a outras já inscritas na ordem vigente: a fronteira capital/trabalho não desapareceu, mas foi reconstruída em novos termos (reestruturação produtiva, flexibilização, novas subjetivações do trabalhador/empreendedor/gestor/investidos, “multiculturalização“ do mercado, etc.).

A fronteira entre direita e esquerda políticas não desapareceu, apesar de ter sido um alvo predileto da despolitização liderada pela direita neoliberal e pela social-democracia de terceira via. Mas novos debates se abriram quanto ao antagonismo direita/esquerda. A direita, assumindo-se crescentemente tecnocrática, opondo a “liberdade” à “igualdade” (atribuída à esquerda) e preocupada em neutralizar o alcance das agendas ambiental e multicultural. A esquerda, assumindo-se cada vez mais defensora das “diferenças” (agenda identitária) e dos direitos humanos e ambientais. O efeito desses traçados de fronteira foi o de uma crescente complexificação do objeto e dos meios da transformação social. Mas, predominando a difusão do gerencialismo, o potencial de transformação “geral” das novas fronteiras e dos seus impactos sobre as velhas foi desfeito, esgotando-se em sua agenda “inclusiva” e abrindo espaço a um questionamento radical de outros opositores “provocados” pelos antagonismos emergentes.

Os efeitos não foram os mesmos em toda parte, nem na mesma intensidade, mas pode-se falar numa fractalização das dinâmicas, uma vez que a transversalidade das fronteiras políticas em princípio afetou os principais atores em toda parte, (re)politizando-os. Fractalização que é resultado de processos de disseminação e iterabilidade (no sentido derridiano, de uma “difusão” que não procede de um centro irradiador, nem começa num único tempo e lugar, mas permite que certos significantes “circulem”, se repitam, se espalhem, mesmo sendo alterados, produzindo recepções múltiplas) e de ressonância (no sentido connollyano de “sons” que se potenciam mutuamente, ecoam ou se sobrepõem sem que necessariamente compartilhem as mesmas posições):

(a) a agenda identitária produziu uma minoritização do mundo – atores-macro, instituições molares, tradições estabelecidas foram questionadas quanto à naturalidade e justiça de suas condições majoritárias; múltiplas agências sociais emergiram em nome do direito à voz, à existência e/ou à reparação de violências passadas; demandas pela legitimidade da simultaneidade de muitas formas de ser, pensar e fazer para além de cada-um-por-si, acompanhadas de exigências de equidade ou mesmo de igualdade substantiva (que implicavam a desestabilização das hierarquias vigentes); mais radicalmente, a noção de “norma(lidade)” foi posta em xeque em nome da “pluralidade” (discursos de diversidade, complexidade, descolonialidade, plurinacionalidade, pluralismo jurídico, etc.).

(b) os efeitos de transformações na economia, na política estatal e na produção de ideias de localidade (novamente associadas a autenticidade, autoctonia e primordialidade) de difundiram de forma glocalizante. Ou seja, as lógicas derridianas da disseminação e da iterabilidade se tornaram meios de difusão/ressonância/resistência/negociação/imposição/rearticulação de tendências associadas ao “global”, seja em nome da reestruturação da economia, seja da necessidade de regulação global da ação dos estados, seja dos impactos translocais da crise ambiental, seja do caleidoscópio de recepções e refrações dos experimentos identitários via midiatização. A direção dos vetores global e local e o timing de sua operação se tornaram indecidíveis.

(c) fractalização também significa que para muitos atores seu microcosmo se torna ao mesmo tempo um ponto de observação de todo o mundo e um fator de provincianização: vendo “tudo o que aí está” incidindo sobre “nosso lugar”, os atores também tendem a se entrincheirar em seus lugares de fala e de “(re)existência”, como se se tratasse de um problema geral da ordem social. Isso trouxe as dinâmicas de politização para perto de si – tornando-as potencialmente mais ameaçadoras – e também gerou a fantasia de fazer a “grande luta” a partir do “nosso lugar” (que implica quase sempre em que essa aspiração de mudança de mundo não vá além de uma projeção do “nosso mundo” particular ou de uma mera contiguidade de lutas parciais, em paralelismo, a partir dos muitos mundos).

E a religião? Esse cenário – e outros mais que não tenho como elaborar aqui, sem esticar além do desejável este texto – suscitou, ao mesmo tempo, novos espaços para a diferença religiosa e novas possibilidades de reinscrição do discurso religioso como discurso público e, portanto, político. Tomemos o caso latino-americano. Aqui, diferentemente da Europa pós-crise de 2008 e Estados Unidos pós-11 de setembro, religião não se relaciona com imigração e com o peso do Islã (seja associado à imigração, seja relido na ótica antagonística do “terrorismo islâmico”). Aqui, o momento populista é um efeito contingente de uma reação conservadora à glocalização das bandeiras identitárias e à popularização de gestões de (centro-)esquerda – de todo modo, via coalizões lideradas por algum setor ou personagem de esquerda. O que aproxima a reação conservadora latino-americana, um dos temas que introduzem a tese do momento populista na América Latina, dos casos europeu e norte-americano é a estrutura disseminativa da formação de fronteiras e das características fractais do processo mencionadas acima. Pesquisas começam a desvelar que a disseminação teve o impulso de múltiplas frentes, algumas em nível de ativismos individuais, outras de organizações de promoção de disputas contra a esquerda em plano global, outras de iniciativas estatais (nos casos de países que vieram a ser governados pela direita e extrema-direita, e cujas estruturas diplomáticas e de segurança/inteligência foram postas a serviço de agendas antiminoritárias e antiesquerda). Podemos falar com Connolly (a partir de Deleuze e Guattari) de máquinas de ressonância antiminoritização. Mas o lado translocal dessa disseminação em nada desfigura a construção local dessas agendas de disputa. Há aproximação – inclusive deliberada, planejada – mas em cada caso “nacional” a agenda teve que ser adaptada/negociada/disputada com questões específicas. Iterabilidade, diria Derrida.

Pois bem, no momento populista latino-americano a minoritização que introduziu novos e muitos atores na cena pública e nas instâncias representativas e decisórias estatais (em todas as dimensões – executivo, legislativo, judiciário e suas respectivas burocracias), também produziu a contraminoritização. Algumas dessas minorias “incluídas” articularam-se a setores das maiorias desterritorializadas, desalojadas, reduzidas ao nível de minorias entre outras minorias (não esqueçamos que a minoritização tem como um de seus marcos o “rebaixamento” pluralista de maiorias ao nível de minorias-entre-outras, e não apenas a autoasserção de grupos invisibilizados ou silenciados como minorias). Essas articulações entre minorias e maiorias minoritizadas produziram as bases sociais e políticas da reação conservadora. E a reação conservadora, por sua vez, se constituiu como formação amigo-inimigo, traçado de fronteira inconciliável entre dois modelos incompatíveis de sociedade (os conteúdos simbólicos que construíram essa incompatibilidade e inconciliabilidade são contestáveis, mas contestabilidade não implica ineficácia discursiva, em impossibilidade de produção de efeitos políticos materiais).

Entre as minorias incluídas estiveram “os evangélicos”, nome de uma formação discursiva do campo conservador protestante, marcadamente pentecostal (uso este termo de modo genérico, sem discriminar reais e imaginárias diferenças internas), do ponto de vista empírico, mas acompanhada por setores mais “tradicionais” deste campo, que se beneficiaram enormemente dos processos de saída das ditaduras militares, mas sentiram-se crescentemente desafiadas pelo cruzamento das fronteiras do antagonismo das identidades raciais e de gênero com o antagonismo das minorias religiosas. Entre as alianças construídas pela formação discursiva evangélica (que, nunca esqueçamos, não se confunde com todo o campo protestante, nem historica, nem contemporaneamente) estão as que a aproximaram do tradicionalismo católico (seja o da direita católica histórica, seja o das novas configurações de direita católicas, antifeministas e anti-Francisco), das elites tecnocráticas neoliberais, dos militares e das variantes alt-right brasileiras e latino-americanas (blogueiros, movimentos neonazistas, etc.). Neste sentido, “os evangélicos” tornaram-se um ator indispensável da reação conservadora – em busca de protagonismo, foram vistos como aportando uma base social mobilizada e coesa que as velhas direitas e a nova direita secular não têm. Ator do momento populista brasileiro e latino-americano (basta pensarmos na Bolívia do golpe contra Evo Morales, do Peru do “Con Mis Hijos No Te Metas”, da Colômbia do “não” ao plebiscito sobre os acordos de paz).

O protagonismo evangélico, particularmente na deslegitimação do governo Dilma e no golpe de 2016, teve seu ponto culminante (em relação à minoritização dos anos 1980 a 2010) na aliança da direita evangélica parlamentar e pastoral com Jair Bolsonaro. O discurso evangélico integrou de forma decisiva, em alguns sentidos catalisadora, a cadeia de equivalências que definiu um povo ameaçado pela esquerda, as minorias e a corrupção. Neste processo, elementos do discurso conservador secular – desvalorização das instituições políticas, redescrição de democracia como jogo majoritário que não deve fazer concessões a demandas minoritárias, defesa de soluções de força para impasses políticos (os conhecidos golpes), ameaça de intervenção militar – somaram-se a elementos do discurso conservador religioso, evangélico e, “ecumenicamente”, católico – leitura moral dos problemas sociais e políticos, foco em questões vinculadas às relações de gênero e de sexualidade como indicativas de uma crise geral de valores na sociedade, utilização de retórica vagamente religiosa para interpelar setores sensíveis da cidadania, construção de uma dupla frente de ataque: o combate à “ideologia de gênero” e a reasserção da “maioria cristã” como contraparte da definição majoritária de democracia.

Os evangélicos”, assim, tornaram-se fiadores do projeto de desdemocratização lido, de sua ótica, como de reconstrução das bases morais da sociedade e da política e de normalização do processo de expressão da vontade democrática como vontade majoritária resistente a pressões de minorias. Aportaram alguns elementos de sua própria identidade, devidamente reegemonizados pela liderança de direita que se apropriou, a partir de início da década de 2010, da voz da representação política dos evangélicos (sem aspas, ou seja, todos os protestantes brasileiros), expandindo-se pelas novas mídias sociais. Essa reegemonização precisa ser enfatizada: a liderança pentecostal e evangélico-conservadora dos anos 2010 não é mais a mesma dos anos 1980 a 2000. Ela se forjou na aproximação crescente da direita parlamentar em reação à hegemonia do PT e ao avanço da agenda de gênero, das minorias sexuais, da igualdade racial, dos direitos humanos (reduzida pela direita política a “defesa de marginais”) e, com menor intensidade, o avanço das políticas de diversidade cultural (que “pegavam” os evangélicos conservadores na medida em que protegiam as culturas indígenas e valorizavam a cultura afro-brasileira, tendo como índice desta as religiões de matriz africana). A essa agenda, a direita secular aportava a defesa de punitivismo e endurecimento das penas no sistema criminal, a defesa da pena de morte, do armamento da população, o relaxamento da legislação de proteção ambiental e a neoliberalização radical da economia e do trabalho.

Que elementos identitários evangélicos foram acionados como demandas próprias na construção do novo povo pós-democrático?

(a) Produziu-se um acirramento da oposição à igualdade de gênero e ao reconhecimento dos direitos civis das pessoas LGBTI+ em nome de uma moral tradicional, heterossexual e patriarcal, extensiva da sexualidade à organização da família e considerada como “a moral bíblica”. Brandindo leituras seletivas e literais de textos bíblicos, uma espécie de microcânon sexual e de gênero foi articulado que reforçava a ideia de família heterossexual com ascendência masculina (mais ou menos despótica, conforme o grau de literalismo e de patriarcalismo endossado em distintas igrejas). Assumindo um debate que já vinha sendo travado em todo o mundo ocidental no interior das igrejas cristãs, estes grupos se postaram de forma antagonística frente a discursos feministas, de diversidade sexual e antiaborto. Este elemento da identidade evangélica recebeu uma sólida contribuição dos tradicionalistas católicos, tanto teológica quanto jurídica, via o discurso da “ideologia de gênero”.

(b) O conversionismo evangélico se viu ameaçado de contenção pela radicalização do discurso multicultural que, nos anos 2000, passou a ser articulado desde movimentos sociais negros, indígenas, feministas, LGBT+, a academia e os partidos de esquerda, em nome do direito à diferença e da proteção à diversidade cultural. O direito à diferença, compreendido em moldes liberais, apontava para uma concepção essencialista da identidade (mesmo quando invocada de modo “estratégico”, para alcançar fins políticos maiores) que a via pré-constituída ao encontro/disputa com outras identidades e, portanto, a ser protegida/defendida, não exatamente afirmada e/ou negociada. A ideia de diversidade cultural que se difundiu nos círculos de ativismo social, cultural, intelectual e político ampliava o direito à diferença do plano individual ou dos pequenos grupos para “comunidades” (realçando, outra vez, o entendimento destas como pré-constituídas ao seu encontro/disputa com outras comunidades), que deveriam ser igualmente protegidas/defendidas de concepções monoculturais, etnonacionalistas e de majoritarianismo social ou religioso.

O problema com os evangélicos, neste sentido, ironicamente, é que eles são muito mais “pluralistas” e “antiessencialistas” em sua concepção de conversão, e entendem as identidades e as comunidades como sempre abertas a se tornarem outra coisa que suas versões recebidas por tradição, costume ou origem étnica. Os evangélicos, neste sentido, são mais individualistas, e afirmam a possibilidade e o valor de se afirmar diferente de tudo ao redor, quer sejam laços familiares, grupos etários, categorias socioeconômicas ou formas de identificação cultural ou política. É difícil dizer isso hoje (e deixo claro que o uso entre aspas acima é realmente provocativo, não descritivo), porque a indisposição contra os efeitos da reação conservadora só percebe nos evangélicos seu lado intolerante, mas o conversionismo supõe, histórica e pragmaticamente, uma noção “construtivista“ de identidade e comunidade, não importa o que se faça com elas no contexto intraeclesial. Pois bem, os evangélicos conservadores viram no avanço dos discursos diferencialista e da diversidade cultural um entrave a suas pretensões conversionistas e uma ameaça a sua confessionalidade dogmática (embora em grande medida leiga, não reflexiva, recebida pela pregação e regulada pela censura do pensamento). E identificaram a aceitação desses discursos como admissão da verdade associada às identidades defendidas por aquilo que passaram a chamar de “a esquerda” (indicativo de uma fronteira antagonística em construção, mais ampla do que “petismo” ou “corrupção”).

(c) As condições de equalização de condições que a democratização dos anos 1980 prometia estender a todo e qualquer cidadão, cidadã ou grupos organizados na sociedade civil foram ativamente invocadas pelos pentecostais desde começo dos anos 1980. Se apresentavam como sujeitos de direitos – os mesmos que eram defendidos pelas forças antiautoritárias que resistiam à ditadura militar – ainda que não pudessem apresentar credenciais de mobilização e militância na formulação das demandas por esses direitos. De qualquer forma, os pentecostais arrastaram todo o campo evangélico em sua mobilização eleitoral a partir da Constituinte (significativamente, um momento de instituição de uma nova ordem jurídico-política – portanto, um momento de clara vigência da lógica da equivalência e do traçado de uma fronteira antagonística entre a ditadura e o povo democrático). O fizeram manejando simultaneamente uma lógica da equivalência (o medo do comunismo ateu e do catolicismo como “anticristãos”, justificando – obviamente por razões falsas – a mobiização para as eleições de 1986) e da diferença (a democracia garantiria liberdade de consciência, expressão e organização para todos, as diferenças sendo amplamente legitimadas, a voz sendo garantida).

(d) O avanço das pautas identitárias aterrorizou as lideranças conservadoras, aproximando-as dos setores mais reacionários entre elas. Mas essa não é toda a explicação. Setores da direita “secular” se aproximaram crescentemente da direita evangélica, mobilizando a pauta tradicional dos valores, defendida pela direita, na ausência de uma questão transnacional (como a União Europeia, para a direita do Reino Unido) ou uma questão da imigração acelerada (como as crises da Síria, Iraque, Afeganistão e países do Norte e do Chifre da África). Mais do que isso, a direita neoliberal também cortejou a direita evangélica. Esta é a história de um processo de articulação que se construiu à sombra de uma esquerda e um centro políticos que passaram a “crer fervorosamente” nas instituições democráticas realmente existentes, confiadas na duração das mesmas e nas condições expansivas da democratização afiançadas pelo lulismo pré-crise de 2013. Assim, as pautas identitárias, desde a perspectiva da militância feminista, antirracista, LGBT+, e a interpelação das direitas fascista e neoliberal à pauta dos valores ameaçados pavimentaram a coalizão conservadora que foi se dando, no campo religioso, entre evangélicos pentecostais e evangélicos históricos com católicos tradicionais e espíritas antiaborto, antifeminismo e antiminorias étnicas e sexuais. No campo secular, defensores de um estado forte na repressão ao “mal” (criminalidade urbana, ativismo dos movimentos sociais) e mínimo na proteção dos direitos sociais e ambientais e na regulação do mercado, se juntavam aos conservadores do campo moral e religioso. Assim, é fato que os evangélicos conservadores se mobilizaram em termos de uma “pauta dos costumes”. Mas este processo só lhes ensejou o protagonismo que a equivalência entre suas demandas e as de outros setores da direita permitiu. Donde a enorme visibilidade dos evangélicos no pós-golpe de 2016, conferindo um caráter de massa que as marchas da família com Deus pela liberdade do pré-golpe de 1964 conferiam desde a Igreja Católica. A sobredeterminação de expressões oriundas das mobilizações de direita do período 1960-1970, sob liderança “evangélica” (na verdade, maciçamente pentecostal), é uma das marcas desse momento populista, no qual família, Deus, liberdade, valores, maioria cristã constituíram uma verdadeira máquina de ressonância da disputa pela reconfiguração do povo para além do lulismo.

Mas o momento populista, com sua aberta disputa pelo povo – o povo das minorias versus o povo da “maioria cristã” – não tem um lado só. E aqui é importante apontar a agência religiosa do outro lado da fronteira. Porque a conflitividade assumida pela direita religiosa acendeu um enfrentamento intrarreligioso que mobilizou distintas frentes: as lutas em defesa da diversidade sexual e da igualdade de gênero nas igrejas (e em formações religiosas), as lutas em defesa das minorias religiosas não-cristãs (que animava discursos ecumênicos e interreligiosos), as lutas em defesa das pessoas negras e indígenas (que suscitavam a intratável questão do racismo e do etnocídio intracristãos), as lutas em defesa do meio-ambiente (que introduziam disputas sobre espiritualidade e o lugar da “criação” na concepção da missão das igrejas), as lutas contra a pobreza, a desigualdade e a violência. Em todas essas frentes havia discursos minoritários no interior das igrejas cristãs, dos centros espíritas, dos terreiros afroamericanos, das comunidades indígenas, dos movimentos de mulheres e antirracistas.

A esquerda religiosa encontrara novo e amplo espaço de reconhecimento e presença no pacto lulista – quer no interior do(s) governo(s) quer como interlocutora desde a sociedade civil organizada (há uma significativa rede, Brasil afora, de ONGs, organizações filantrópicas e um “terceiro setor” evangélico e ecumênico, que se somam a centenas de outras organizações assistenciais ou de mobilização católicas, espíritas e de outras religiões), quer como representação da sociedade nos mecanismos de participação social assegurados desde os anos 1990. Na Igreja católica, esta esquerda sofrera duros reveses nos papados de João Paulo II e Bento XVI, mas vinha ressurgindo desde o papado de Francisco, não sem antes encontrar novas energias ao abrigo da coalizão petista, tendo importantes referentes da mesma formado parte do alto escalão dos governos de Lula e Dilma. No campo evangélico, essa evidência foi bem mais modesta, mas perceptível. Uma instância da Secretaria-Geral da Presidência coordenou várias iniciativas interministeriais e com setores organizados da sociedade civil e dos movimentos sociais com contrapartes “progressistas” das igrejas evangélicas. Entretanto, a partir de 2016, com a consolidação da nova hegemonia da direita evangélica no campo intraeclesial protestante, sob liderança pentecostal, esta franja de esquerda religiosa perdeu espaço e enfrentou dura disputa com a direita religiosa, dentro e fora das fronteiras eclesiásticas.

Somente a partir de 2018, durante a campanha eleitoral e com o início do governo Bolsonaro, quando o momento populista brasileiro chegou ao seu ponto máximo de definição, começou-se a perceber um reagrupamento das vozes religiosas, seja nas trincheiras eclesiásticas – o pequeno Concílio Nacional de Igrejas Cristãs – Conic, que inclui a Igreja Católica, e algumas denominações a ele associadas, bem como lideranças de igrejas independentes – seja na proliferação de “coletivos” e páginas de mídias sociais que multiplicaram posições e demandas. Em condições de minoritização e glocalização, os pequenos números podem ter um impacto desproporcional ao seu tamanho. Em vigência de uma hegemonia conservadora isso é potencializado pela tendência “alarmista” e repressiva dos conservadores, que veem conspiração nas menores ondulações de opinião ou ventos contrários ao eco de sua própria voz, e se põem a “denunciar” e atacar virulentamente a dissidência e a oposição. O certo é que o discurso da “maioria cristã” com que a direita religiosa procurou articular sua demanda de direção do bloco de direita pós-2016 tem, desde as eleições de 2018, cada vez maisrepresentado uma vontade de poder, mais do que uma representação. Apesar da credulidade de setores da mídia e da esquerda apeada do poder – ou fora dele – a tal maioria é uma reação à conjuntura lulo-petista de 2003 a 2015, nomeando um segmento do bloco conservador em busca de consolidar sua iniciativa na nova conjuntura.

O dissenso é a norma entre os evangélicos, católicos e, pelo visto, espíritas, mostrando que a fronteira entre o povo das minorias e o povo bolsonarista não só se consolidou, mas ampliou suas equivalências dos dois lados, trazendo novos sentidos, novas identificações, novas bandeiras, novas estratégias para cada campo. As eleições de 2022 ainda transcorrerão sob essa constelação de forças. E agora as vozes da esquerda religiosa estão mais audíveis e mais audazes – confrontando abertamente a ortodoxia e a hegemonia conservadora. Obviamente, do desfecho não sabemos. Mas podemos dizer que da partida, podemos afirmar que é populista. Não no carcomido e reiterado sentido de lideranças carismáticas manipuladoras açulando massas ignaras, mas no sentido de uma economia das relações de poder em que a conflitividade social se “simplifica” numa linha antagonística que, ainda quando se manifesta de distintas formas em diferentes setores da vida social, não desaparece em qualquer deles.

Vivemos um momento populista na religião? Nos termos da análise proposta acima, sim. O momento populista é, de um lado, a emergência de uma fronteira política separando um nós e um eles, empiricamente manifesta no que muitos temos chamados de onda conservadora – que é qualificadamente uma reação conservadora. De outro lado, o momento populista diz respeito à rearticulação do discurso evangélico minoritário – um discurso em defesa de reconhecimento e ocupação de espaços de influência na sociedade e no estado – com outras demandas de contenção e desmontagem das conquistas alcançadas na linha da pluralização e da minoritização. Esta rearticulação desloca o discurso dos evangélicos em dupla torção: o abandono da lógica minoritária (de demandas formuladas a uma ordem reconhecida como legítima e compatíveis com as de outros atores sociais) para uma lógica majoritária (o discurso da maioria cristã) e a ativação das diferenças – de há muito conhecidas e expressas – em termos antagonísticos. Esta rearticulação produziu alinhamentos novos e reforçou outros. Mudou a configuração do ator evangélico como “os evangélicos” (definido de modo majoritário, com exclusão de qualquer diferença interna legítima – quem não é conservador doutrinaria e moralmente e de direita, politicamente, não é evangélico nem cristão). Trouxe à tona uma identidade evangélica assumidamente neoliberal, punitivista, antiminoritária, patriarcal, racista, antidemocrática. Mas, no campo relacional que o traçado de toda fronteira delineia, após o impacto interno e externo inicial desta formação discursiva (neo)conservadora, as novas vozes hegemônicas não ficou sem contestação. De um lado, ela produziu esta contestação, ao antagonizar seus nomeados adversários e inimigos. De outro, a autoidentificação de um campo evangélico dissidente, em cada área denunciada pela direita, notadamente a sexual, a de gênero e a étnico-racial, vem levando a novas frentes de disputa, dentro e fora das igrejas. Em cada uma dessas frentes, as solidariedades, alianças e coalizões ainda produzem seus efeitos de agregação (de cada lado) e repulsa ou aversão. Há, sim, um momento populista na religião. Está aí nas confissões de desconcerto, derrota ou medo das minorias e seus aliados, está aí na raiva, indignação e disposição para o enfrentamento entre os lados. Polarização? Sim, mas não só. Populismo autoritário? Sim, mas não só. Sabemos para onde vamos? Achamos que sim, mas nem tanto.

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