Sujeitos da política, ou por que os evangélicos não são quem dizem ser

Ofereço aqui uma hipótese de leitura que será direta e "programática", mais do que expositiva, demonstrativa. Ao se constituírem como minoria, desde os anos 1980, os pentecostais pretenderam expressar uma identidade (há muito) privada de visibilidade e reconhecimento. Foram provocados de dentro e de fora. De dentro, pela interpelação a tomarem consciência de seu crescimento e da necessidade de se afirmarem autonomamente (em particular em relação aos protestantes tradicionais). De fora, pela interpelação a se afirmarem como sujeitos de direitos, no contexto de uma democratização expansiva, com a emergência (num sentido "técnico" físico-matemático) de novos e múltiplos atores sociais. 

Esta dupla interpelação sempre-já deslocou a identidade pentecostal para fora de si. Para fora do autoisolamento e negação do mundo que caracterizou as sete décadas anteriores. Para fora de sua visão autolimitada no interior do protestantismo brasileiro, levando-a a projetar-se como a norma e não a exceção - pentecostalização do protestantismo, de um lado, e desejo de autorepresentação, de outro. Para fora do campo eclesial, rumo ao jogo da representação política (ainda que corporativa, no sentido gramsciano deste termo), rumo ao jogo da legitimação social (via exibição da virtude pessoal dos pentecostais, como sujeitos confiáveis, e via ações humanitárias, como sujeitos altruístas). Para fora do campo religioso, ao ingressar numa interdiscursividade ou numa semiose social de amplo alcance, da conversação cotidiana, das práticas culturais e midiáticas, do debate público, das discussões teóricas normativas sobre temas de interesse pentecostal (como a intimidade, a sexualidade, as relações de gênero, a natalidade, a liberdade religiosa, etc.).

Fora-de-si, o pentecostalismo precisou se constituir como identidade hegemônica no protestantismo - via a captura do significante "evangélico" para além de um qualificativo, através de sua nominalização como "os evangélicos". A expressão representou cada vez mais, desde os anos 1990, um signo da pentecostalização generalizada do protestantismo brasileiro, muito além dos já elevados dois terços de pentecostais. Mais do que uma hegemonização do campo protestante em geral, "os evangélicos" também funcionou para a hegemonização do próprio campo pentecostal, primeiro, pela projeção de uma minoria no seu interior - os neopentecostais - que, partindo de onde já estavam os pentecostais clássicos da Assembleia de Deus no início dos anos 1990, lançam-se a difundir suas doutrinas da batalha espiritual, da prosperidade e do domínio, para o campo pentecostal clássico, produzindo uma marcada inflexão. De rejeitados como "não-evangélicos" os neopentecostais se tornaram líderes de um campo no qual permaneceram numericamente minoritários. Em segundo lugar, a hegemonização produzida por "os evangélicos" operou, no contexto de uma crescente insatisfação com o lugar ocupado nos espaços governamentais a partir da coalizão lulista (2003-2016), no sentido de um corte produzido por um segmento ainda mais conservador que a média desses "evangélicos". A partir de 2010, aproximadamente, com o debate sobre o aborto nas eleições presidenciais, uma direita evangélica coesa, crescentemente em busca de articulações nacionais e transnacionais e autoconfiante em sua capacidade de manter níveis de representação estáveis em meio à oscilante "bancada evangélica", produz uma nova torção sintagmática, "sequestrando" a representação geral do protestantismo - pentecostal e não-pentecostal - via uma retórica de representação "dos evangélicos", de forma não-qualificada, não-limitada.

A constituição do pentecostalismo como identidade hegemônica também reforça a pluralização da religião pública no Brasil, muito além do catolicismo da hierarquia e da "Igreja na Base". Disputa anticatólica para reivindicar espaços na "religião civil", mas também no lugar de enunciação pública da religião no país. Disputa que implicou numa episcopalização e, de todo modo, numa hiperclericalização do pentecostalismo, chegando ao limite do modelo da "nova reforma apostólica", na qual, a pastores/as e bispos/as se sobrepõe(m)  os/as apóstolos/as e seu "colégio apostólico" (uma espécie de cardinalato pentecostal). Mas também disputa com outras religiões e com atores sociais que, sendo contemporâneos da minoritização pentecostal, se tornavam agora adversários a serem combatidos numa luta pela proteção dos "valores tradicionais" (anos 2010 em diante).

Acusar essa trajetória de expressão do fundamentalismo é um equívoco conceitual de grande monta. É sancionar uma terminologia nativa e sua autocompreensão como fato consumado, como conceito. Não se trata tanto do fato óbvio que o pentecostalismo é uma religião da palavra pregada e conversada, mais do que escrita e lida e que, neste sentido, está muito mais propensa à circulação policêntrica e no limite descontrolada de sentidos do que à consignação em fórmulas doutrinárias e interpretações fechadas das Escrituras. Trata-se, mais bem, de que, fora de si, o pentecostalismo já não poderia - nunca pôde - proteger-se da deriva imposta por suas "aventuras" em busca de representação e influência, para além da segurança das comunidades de fé autoisoladas, com suas lideranças pouco articuladas e pouco conectadas hierarquicamente. Assim, seu ensino ético, quase inexistente para além de injunções ao bom comportamento, à modéstia e à generosidade - portanto, ética privada, não pública - foi sendo construído num cenário e num terreno que continuamente empurrou os pentecostais a serem e agirem como "evangélicos" e, após o golpe do impeachment, crescentemente como "maioria cristã" da qual, obviamente, não é mero espelho. A ética pública "dos evangélicos" é uma ética contextual. 

Isto explica tanto a relativa desenvoltura adquirida pelos pentecostais em discutir publicamente seus entendimentos e suas propostas de religião socialmente relevante (ganho suficiente espaço público na cultura política e na cultura de massas - do cotidiano às mídias - para não depender da boa vontade de outros), quanto o crescente engajamento na articulação de uma leitura "leiga" da Bíblia com uma teologia, esta sim, fundamentalista, de origem anglófona. A desenvoltura resulta do efeito decantado de mais de quatro décadas de exposição pública, profissionalização (de campanhas e de atuação parlamentar e governamental) e foco no controle de canais de mídia (embora a explosão da autoenunciação que as mídias sociais permitiram tenha produzido alguns curto-circuitos na transmissão hierárquica do discurso autorizado). A articulação discursiva é menos óbvia. Explico-me.

Os pentecostais nunca se esmeraram muito em ir além de metacomentários aos textos bíblicos, assentados numa narrativa do arrependimento e da conversão pessoais e de uma escatologia iminente (premilenista). Foi a minoritização que levou à "sistematização" dessa leitura leiga, marcadamente ancorada no Velho Testamento, e erigida sobre releituras ("aplicações") das atitudes e motivações de personagens bíblicos que nunca foram "pessoas privadas" - Noé, os patriarcas, José, Moisés, os juízes, os reis (especialmente Davi e Salomão) - como paradigmas de uma sociedade conforme a vontade de Deus. Somada a essa cultura de histórias bíblicas repetidas desde a tenra infância nas esc olas dominicais, nos cânticos e nos sermões, fez-se também uma incursão pelos profetas bíblicos que servia de modelo para a trajetória minoritizante - autoasserção, autoconfiança, demarcação de posições em termos agonísticos com a ordem dominante e localização na fronteira entre o espaço estatal e o espaço da "sociedade". Assim, se o discurso profético serviu para guiar a estratégia de emeergência, o discurso narrativo-normativo dos personagens serviu para construir um "projeto" bricolado de como exercer o poder (ou consentir no seu exercício por líderes "permitidos por Deus").

Esta matriz leiga de leitura bíblica sustentou a minoritização pentecostal, mas não foi suficiente para informar o salto para a frente que a direita evangélica pretendeu dar na conjuntura do impeachment. Foi preciso um encontro com elaborações mais sólidas - e é só aqui que podemos "importar" a tese do fundamentalismo tão brandida hoje pelos adversários do pentecostalismo, notadamente nos movimentos sociais e no cristianismo de libertação (católico e protestante). Pois aqui se dá não um encontro, mas uma articulação deliberada, haurida de estudos (formação teológica formal) e de contatos com teologias pentecostais não-brasileiras e seus expoentes contemporâneos. Isso deixa claro que esse processo não chegou de uma vez, mas a conjuntura que favoreceu sua manifestação como discurso aspirante à hegemonia, sim. Foi a crise desencadeada pelas chamadas Jornadas de Junho de 2013 e, especialmente, intensificada ao máximo com a formação do bloco pró-impeachment em 2015 (eleição de Eduardo Cunha, confluência das direitas do PSDB, MDB, DEM e outras forças minoritárias no parlamento, mobilização da grande mídia nacional e de setores do judiciário e das Forças Armadas), que ensejou as condições de possibilidade para a emergência de um discurso evangélico reacionário de "tomada do poder". As narrativas de personagens bíblicos e o discurso profético-sectário não permitiriam inserção em condições de influência no novo cenário. Uma teologia do domínio e uma teologia reconstrucionista mais solida e argumentativamente ancoradas em velhas e novas camadas de tradição protestante - e pentecostal - se tornaram "disponíveis" a cumprir esse efeito aglutinador, articulador de uma teologia política pentecostal de direita em condições de disputar espaços de poder no novo cenário de desconstituição do lulismo.

O discurso da nova direita evangélica parece replicar o discurso da chamada "nova direita cristã" americana. Mas só se a pensarmos no contexto do novo século. Da nova direita da era G. W. Bush (2001-2009). Não é mais apenas cristã. E é majoritariamente pentecostal. Tampouco seu lado cristão é exclusivamente pentecostal, porque sua teologia do domínio é disputada pelos reconstrucionistas. A direita calvinista, não-pentecostal. Embora o velho protestantismo de direita não-pentecostal se mantenha presente, não dá mais as cartas. Esta nova direita cristã é "ecumênica": se afirma em pé de igualdade com os católicos, se vê amiga dos judeus e de braços com neoliberais que outrora se opuseram a seu moralismo estreito. Esta nova direita ainda não temautonomia de enunciação, mas tem fontes reconhecidas de autoridade teológica no mundo fundamentalista, mas também no mundo dos dominionistas e dos reconstructionistas - que não são todos, nem simplesmente fundamentalistas. Os pentecostais e os protestantes de direita brasileiros foram buscar no neoconservadorismo americano sua mais elaborada articulação programática para, enfim, se contraporem à esquerda "comunista" e às minorias antivalores tradicionais e se apresentarem com a dignidade de um discurso teológico-político maior que uma retórica inflamada contra os males do mundo.

Finalizo essa exploração excessivamente concisa e lacunar, ressaltando dois pontos decorrentes, mas necessitados de maior elaboração:

1. A despeito da intensa construção da representação recentemente traduzida em aspiração hegemônica no interior de uma coalização neoconservadora, "os evangélicos" continuam sendo coadjuvantes do projeto político da direita brasileira, como parte de seu braço neoconservador "à americana". Do escanteamento de Magno Malta às insatisfações de Silas Malafaia, passando pela própria limitação imposta a Paulo Guedes no governo Bolsonaro e pelo lugar discreto que o ministério de Damares Alves ocupa na correlação de forças do mesmo, os pentecostais continuam sendo puxados (desde fora) e empurrados (desde dentro, pela discreta oposição que emerge no campo protestante) para fora de si. Sua autoafirmação é seu descentramento.

2. O ponto de maior definição do discurso "dos evangélicos" ao mesmo tempo os revela em sua força - portanto, suporta sua jogada hegemônica mais audaciosa - e em sua fraqueza - evidencia enormemente seu particularismo ideológico. Se no plano da política, a teologia política dominionista-reconstrucionista manifesta uma pretensão hegemônica (agrupada em torno de Bolsonaro, por enquanto), nos campos religioso e da sociedade civil organizada, seu jogo é cada vez mais exposto em sua singularidade. Quanto mais a diferença é acentuada, mais se desestabiliza a condensação de forças que deu à luz "os evangélicos" como religião pública. Crescem os questionamentos teológicos à teologia política neoconservadora, cresce a articulação de forças entre atores minoritários e teologias políticas minoritárias (às quais se aliam setores do catolicismo). Intensifica-se a contestação à hegemonia pentecostal manifesta como hegemonia neoconservadora. 

Onde esses dois processos convergirão para abrir um novo capítulo na religião pública brasileira é algo que, no curto prazo, aponta para o destino do governo Bolsonaro. O quanto o neoconservadorismo pentecostal sobreviverá a uma derrocada bolsonarista parece já se prefigurar no cortejo de candidatos presidenciais a suas lideranças. O quanto a resistência ao neoconservadorismo - animada pela acusação de "fundamentalismo" ou de "fascismo" - avançará, é mais difícil de apostar. Mas o que levou quatro décadas para nos trazer até aqui provavelmente não desmoronará em um segundo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Momento populista na religião?

Duas formas de religião pública e a construção do povo