Reflexões cristãs sobre a verdade histórica

Geraldo Witeze Junior1


Os cristãos estão acostumados a refletir sobre a verdade desde o princípio da sua religião. Para o Cristianismo essa é uma questão central, da qual não é possível abrir mão. No evangelho de João lemos: “Jesus disse aos judeus que creram nele: ‘Vocês são verdadeiramente meus discípulos se permanecerem fiéis a meus ensinamentos. Então conhecerão a verdade, e a verdade os libertará’”. (João 8:31,32)2. Se o próprio Jesus prometeu que conheceríamos a verdade, não podemos ser cristãos sem aceitar isso.

Um outro exemplo bíblico é bastante eloquente. Quando estava preso, Jesus teve um célebre diálogo com Pilatos, que terminou dessa forma: “[Jesus disse:] ‘De fato, nasci e vim ao mundo para testemunhar a verdade. Todos que amam a verdade ouvem minha voz.’ Pilatos perguntou: ‘Que é a verdade?’” (João 18:37,38). Ora, quem duvida da verdade é um pagão, que ainda por cima lavou as mãos e entregou Jesus para ser crucificado. Os seguidores de Jesus são aqueles que amam a verdade.

Essas duas passagens são suficientes para deixar claro que o Cristianismo não pode abrir mão da ideia da verdade. No entanto, a questão é mais complexa, sobretudo em tempos de notícias falsas, pós-verdade, relativismo e, muitas vezes, da existência de uma lógica de conveniência. Hoje é comum ouvirmos as pessoas falarem sobre a “minha verdade” ou expressões como “essa é a sua verdade”. Nesse contexto, como saber se existe verdade ou mesmo qual das muitas narrativas sobre o mesmo tema é verdadeira? Afinal, tudo é mesmo apenas uma disputa de narrativas?

Ora, os historiadores se debruçam sobre essa questão há bastante tempo. Se hoje há um certo senso comum a respeito de cada indivíduo possuir a sua verdade, algum tempo atrás as coisas eram diferentes. No século XIX havia uma corrente filosófica bastante influente chamada Positivismo, que defendia fortemente a existência da verdade. Um exemplo literário nos ajuda. No romance Tempos difíceis, Charles Dickens criou o personagem Thomas Gradgrind, cuja fala inicial não poderia ser mais categórica:

Ora, eis o que quero: Fatos. Ensinem a esses meninos e meninas os Fatos, nada além dos Fatos. Na vida, precisamos somente dos Fatos. Não plantem mais nada, erradiquem todo o resto. A mente dos animais racionais só pode ser formada com base nos Fatos: nada mais lhes poderá ser de qualquer utilidade. Esse é o princípio a partir do qual educo meus próprios filhos, e esse é o princípio a partir do qual educo estas crianças. Atenha-se aos Fatos, senhor.3

Dickens explora magistralmente as consequências trágicas dessa filosofia, o texto é sublime em vários aspectos. Aqui, porém, ficamos apenas com Gradgrind. Existiria uma verdade objetiva e acessível, e isso seria tudo o que precisaríamos saber para viver. O resto seria dispensável. Há um exemplo atual que mostra a perenidade dessa filosofia no senso comum, a expressão “contra fatos não há argumentos!” Podemos pensar também no hoje saudoso “isso está comprovado cientificamente!”, que parece tão distante, especialmente num cenário de avanço do negacionismo da ciência.

A reação ao Positivismo não tardou. Dentre os detratores dessa ideia singela de verdade, que influenciou o Materialismo e o Cientificismo, estavam o escritor Fiódor Dostoiévski e os filósofos Søren Kierkegaard e Friedrich Nietzsche. Este último escreveu:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornam gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.4

Em síntese, a verdade seria uma invenção humana, meramente algo aceito pela maioria e que permanece inconteste.

Nietzsche foi muito influente e um de seus principais herdeiros foi Michel Foucault, que seguiu sua trilha nesse ponto. No entanto, a negação da verdade, pelo menos da verdade histórica, atingiu seu ápice com o crítico literário Hayden White, defensor da tese de que tudo é discurso e que, portanto, a história e a literatura se equivalem. Chegamos, enfim, ao solo em que germinou a pós-verdade e a disputa de narrativas. Podem culpar White!

Não foram poucos os que criticaram o relativismo radical, cujas raízes se encontram no século XIX. Dentre os seus críticos podemos nomear pensadores como G. K. Chesterton (Hereges), C. S. Lewis (A abolição do homem) e Marshal Sahlins (Esperando Foucault, ainda!) e Slavoj Žižek (O absoluto frágil). Para não me estender, vou citar apenas o antropólogo Sahlins:

O relativismo cultural é, antes de mais nada e sobretudo, um procedimento antropológico interpretativo – ou seja, metodológico. Ele não consiste no argumento moral de que qualquer cultura ou costume é tão bom quanto qualquer outro, se não melhor. O relativismo é [a] simples prescrição de que, para que possam tornar-se inteligíveis, as práticas e ideias de outras pessoas devem ser ressituadas em seus contextos históricos, e compreendidas como valores posicionais no campo de suas próprias relações culturais, antes de serem submetidas a juízos morais e categóricos de nossa própria lavra. A relatividade é a suspensão provisória dos próprios juízos de modo a situar as práticas em pauta na ordem cultural e histórica que as tornou possíveis. Afora isso, não se trata de forma alguma de uma questão de advocacia.5

A relativização de tudo nos leva a uma situação de aporia – uma espécie de perplexidade paralisante. Não falo, é claro, do relativismo cultural, saudável e necessário, especialmente na pesquisa acadêmica. Estou me referindo à ideia filosófica de que a verdade não é apenas inalcançável, mas simplesmente não existe. Buscá-la, portanto, seria inútil. Como consequência, tudo o que entendemos como verdadeiro seria apenas um acordo ou, em termos mais precisos, um contrato social. Isso levanta algumas questões: tudo o que sabemos é somente uma convenção? O conhecimento é impossível e não sabemos nada? Afinal, é possível saber algo, de fato?

Tanto o senso comum quanto o método científico questionam esse tipo de relativização a que me refiro. Se não existe verdade, então como poderíamos saber o que aconteceu no passado? Mas sabemos o que aconteceu e contamos a nossa história para os demais. Claro, há interpretações diferentes sobre o passado, mas também há fatos básicos que não podem ser negados. Por exemplo, podemos discutir sobre a natureza do regime da União Soviética, mas ninguém em sã consciência duvidará de sua existência. Ou então, num exemplo mais corriqueiro, hoje eu comi arroz com lentilhas no almoço e posso garantir que tanto o arroz com as lentinhas não só existiram, como ainda existem e estão bem temperados!

O método científico traz objeções mais sérias. O ponto de partida de toda a ciência é que o universo é compreensível. A partir desse pressuposto muito básico, a ciência pôde se desenvolver em seus mais variados ramos. Assim, sabemos diversas coisas como a velocidade da luz e do som, da existência das células e dos vírus, encontramos a cura para diversas doenças. Enfim, a maior evidência de que aquele pressuposto é verdadeiro é que a ciência funciona. Claro, ignoramos muitas coisas, mais do que sabemos, e o conhecimento é provisório, mas essa é uma outra discussão.

O centro da questão aqui é o da existência da verdade. Se recusamos o relativismo e defendemos a existência de alguma verdade, isso não significa que vamos nos tornar positivistas ingênuos, discípulos do sr. Gradgrind. Não vivemos apenas de fatos, mas aceitamos que a verdade existe, mesmo que não possamos alcançá-la completamente. Mas se não podemos alcançá-la, como sabemos que existe?

Ora, não se trata de provar a existência da verdade através da ciência, já que essa é uma discussão filosófica. Do ponto de vista cristão, entendemos que a verdade existe e Deus a conhece. Nós, porém, temos uma visão limitada pela própria condição humana, o que pode ser aceito não apenas pelos cristãos, mas mesmo por aqueles que não professam nenhuma fé religiosa. Além disso, desde Santo Agostinho, pelo menos, os cristãos refletem sobre o impacto do pecado em sua capacidade de conhecer. Também os reformadores Lutero e Calvino, bem como o filósofo Alvin Plantinga trataram desse assunto.

Existe uma grande diferença entre negar a existência da verdade e assumir que ela seja inalcançável. A negação nos leva à aporia, ao relativismo, à disputa de narrativas e ao enfado pós-moderno. A afirmação da verdade, mesmo que inalcançável, nos traz a ciência, o conhecimento da história e a sanidade mental. E a ciência nos ajuda muito aqui, pois mostra como aceitar a existência da verdade, buscá-la e alcançar resultados maravilhosos, reconhecendo a provisoriedade e as limitações desse conhecimento. Sabemos algo, mas não sabemos muito mais.

A ciência funciona com pressupostos, teorias, métodos e dados. Se qualquer um desses elementos mudar, os resultados serão diferentes. A História, mesmo para aqueles que não a consideram uma ciência, também funciona assim. É importante aqui destacar que os resultados científicos não são considerados como verdades absolutas, mas como o conhecimento que se alcançou até aqui. E assim nós já avançamos muito.

As teorias científicas, como a Evolução, são o resultado de ampla pesquisa e da formação de consensos. Quando se alcança um consenso, a teoria é aceita como verdadeira até que se encontre algo que a substitua. A ciência não funciona por meio de meros desafios ou bravatas. É um empreendimento coletivo, pode-se dizer até mesmo comunitário. E a comunidade científica ou acadêmica é cautelosa com os questionamentos que são feitos aos consensos. A ciência, nesse sentido, é bastante conservadora e se move lentamente.

A História, enquanto conhecimento sobre o passado, tem uma particularidade: seus dados são vestígios do passado, que podem ser documentos escritos, obras de arte, cultura material e o testemunho oral, por exemplo. Os historiadores chamam isso de fontes. As fontes são interpretadas à luz de teorias e métodos, e isso é submetido à crítica dos pares. É um processo lento, longo e duro até que se alcance algum consenso, o que nem sempre acontece.

O consenso é uma obra coletiva. Assim, a verdade histórica, provisória e parcial, é o resultado de um consenso. Os questionamentos dos consensos, para serem considerados, devem passar pelo mesmo processo para serem validados. E isso não é algo que se faça individualmente. Cito Sahlins novamente:

Para que as categorias possam ser contestadas, é preciso haver um sistema comum de inteligibilidade, estendendo-se às bases, meios, modos e tópicos do desacordo. As diferenças em pauta, além disso, implicam alguma relação. Tanto mais se elas são subversivas, expressando assim os valores e interesses posicionais dos falantes em uma certa ordem sociopolítica.6

Não basta um artigo ou entrevista bombásticos para romper o consenso. É preciso obter o reconhecimento dos pares. Questionamentos solitários, polemistas, lacradores, que afirmem contestar “tudo o que está aí” são ruins. Em nome da defesa da verdade histórica ou de mostrar fatos ocultados, acabam contribuindo para o avanço da lógica conspirativa e, com isso, enfraquecem a ciência e sua busca pela verdade. Não se restabelece a verdade histórica desqualificando os métodos e a comunidade de historiadores. O resultado disso será tão somente o enfraquecimento desse campo de conhecimento, deixando apenas um buraco em seu lugar.

As inovações se firmam aos poucos, muitas vezes por meio de fortes polêmicas entre especialistas. Aqueles que não dominam o assunto debatido seguramente terão dificuldades para compreender essas polêmicas, pois isso exige conhecimento avançado, decorrente de muito tempo de estudo. Estou falando de anos, por vezes décadas, e não de uma pesquisa rápida. Assim, quando não somos especialistas em determinado assunto, o mais recomendável é procurar pelo consenso historiográfico do que buscar vozes dissonantes que ainda não se estabeleceram.

Se seguirmos essa trilha, podemos aprender mais e fugir de figuras que insistem que o conhecimento histórico não passa de uma grande conspiração de tal o qual grupo para dominar as mentes e os corações das pessoas e direcioná-las para alguma finalidade maléfica. Simplesmente não é assim que as coisas funcionam. Mas então, o que é a verdade? Podemos dizer que a verdade é o que sabemos até agora. Sendo cristãos, podemos evocar o apóstolo Paulo: “Agora vemos de modo imperfeito, como um reflexo no espelho, mas então veremos tudo face a face. Tudo que sei agora é parcial e incompleto, mas conhecerei tudo plenamente, assim como Deus já me conhece plenamente.” (1 Coríntios 13:12).

A verdade existe e Deus a conhece. Dentro de nossas limitações, ela vai se revelando a nós, pouco a pouco. A pesquisa acadêmica, científica, nos ajuda nessa caminhada. De nossa perspectiva, podemos aceitar a existência da verdade, sem problemas, mesmo sabendo que ela está num eterno processo de revisão. Da perspectiva histórica, isso não significa que o passado mude, mas que nós sempre estamos olhando para ele a partir de novos ângulos e formulando novas perguntas, o que leva a respostas diferentes. Sim, a verdade histórica existe, o passado pode ser verificado, mas esse é um processo que nunca termina. A verdade existe e é preciso buscá-la, sem deixar espaço para teorias conspiratórias, charlatanices e revisionismos que se baseiam em achismos e polêmicas vazias. A verdade, portanto, é uma eterna busca.


Referências

DICKENS, Charles. Tempos difíceis. Trad. José Baltazar Pereira Júnior. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (Orgs.). Narrar o passado, repensar a história. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2000. (Coleção Idéias, 2).

SAHLINS, Marshall. Esperando Foucault, ainda. Trad. Marcela Coelho de Souza; Eduardo Viveiros Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2013.


1Professor do Instituto Federal de Goiás. Pós-doutorando na Fundação Joaquim Nabuco.

2Todas as citações bíblicas são da Nova Versão Transformadora e foram extraídas do site https://www.bibliaonline.com.br.

3DICKENS, Charles, Tempos difíceis, 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 13.

4Nietzche, citado por RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (Orgs.), Narrar o passado, repensar a história, Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2000, p. 5.

5SAHLINS, Marshall, Esperando Foucault, ainda., São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 68–69.

6Ibid., p. 45.

Comentários

  1. Publicamos aqui um texto de Geraldo Witeze Jr. Como todos os textos assinados que se publicarem aqui, a opinião expressa é de responsabilidade dos/as autores/as. Mas aqui temos um argumento direto de como a questão da verdade pode ser colocada sem agressão à ciência, ao debate filosófico e ao senso comum, desde a perspectiva de um cientista social evangélico brasileiro.

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