O pastor André Mendonça encaminha pedido ao STF para liberar celebrações presenciais de Páscoa. Dupla violação do estado laico constitucional brasileiro. 
 
Primeiro, a AGU representa judicial e extrajudicialmente a União. Representa o Poder Executivo em questões de interesse do Estado brasileiro, não do governante de plantão ou de seus apoiadores. Trata-se, portanto, no mínimo, de um procedimento estranho que a União se veja incomodada pela prevalência de medidas de distanciamento social extraordinárias referentes à pandemia, que em nada afetam a liberdade religiosa. Não há cerceamento da liberdade de consciência. Não há cerceamento da liberdade de expressão. Não há cerceamento da liberdade de culto e de organização religiosa (a não ser presencial. Milhares de igrejas e comunidades de fé pelo país têm mantido seus e suas fiéis participando de atividades virtuais). Não há manifestação de intolerância. Não há intimidação. Não há perseguição.
 
MAS, ao imiscuir-se, representando a União (como constitucionalmente lhe cabe), em assuntos de interesse direto das religiões, a AGU viola a proibição constitucional de que o estado promova, proteja de forma privilegiada, alguma religião. Óbvio que Mendonça não é idiota. O verniz de "interesse geral" das religiões está explícito na solicitação. Mas não se trata de interesse do Estado brasileiro. O Estado brasileiro não embaraça, mas não "facilita" a inobservância da lei para as religiões. Além disso, em condições extraordinárias, como a deste momento da pandemia, pior do que o do ano passado sob todos os aspectos, mesmo com vacinas sendo aplicadas, por que razão o Estado brasileiro quer se envolver na transigência da proteção geral da população para favorecer certas lideranças religiosas? Não são as pessoas religiosas que pedem. São líderes que dizem representá-las. Não são esses líderes que submetem medidas cautelares à justiça. É o próprio chefe da Advocacia Geral da União. A AGU age inconstitucionalmente, em beneficio de interesses que não são nem gerais da população, nem juridico-políticos do Estado. VERGONHA!
 
Segundo, o pastor André Mendonça põe seu entendimento jurídico a serviço de uma teologia específica. Seu neocalvinismo o autoriza a usar a lei como se lei bíblica fosse. Parasitar a lei civil com seu entendimento religioso. Como servidor público, infringe o código de ética do serviço público. E como cristão, arvora-se em definir a fidelidade à fé a partir de uma posição teológica particular. Como servidor público, põe seus interesses pessoais acima do interesse público (que tem que ser conforme à Constituição, a qual define que o Estado brasileiro não tem religião - o argumento da "sociedade cristã" não tem qualquer base legal para solapar a laicidade do Estado; a sociedade cristã também é formada por quem defende a laicidade, entendendo que se não houver igualdade plena de condições entre as religiões, não há legitimidade naquela ou naquelas que se valerem do Estado para impor suas crenças e ritos).
Como cristão, o pastor André Mendonça promove um movimento que, ao lado da expressão pentecostal brasileira - mais ancorada na teologia da prosperidade e na batalha espiritual - soma-se a ela com sua visão do domínio, a ideia de que Deus quer que seus filhos e filhas mais fiéis exerçam a liderança do mundo, imponham a lei bíblica (o que quer que isso queira dizer - normalmente fica para esses fiéis fidelíssimos decidirem) e preparem o mundo para receber o Messias de novo. Esse movimento não é nem conhecido direito pela maioria dos cerca de 60 milhões de evangélicos e evangélicas do Brasil. MAS sua ação não representa a posição aceitável de grande parte das igrejas cristãs, principalmente das históricas, que mesmo ali onde, residualmente, existem como igrejas oficiais (Inglaterra, Escócia, Finlândia, Dinamarca, Costa Rica, por exemplo), não apelam para esse privilégio para violar a lei.
 
A Páscoa é uma celebração que se funda no reconhecimento de que a injustiça legal e política é condenada por Deus e que o inocente é ressuscitado. É uma celebração de que a vida é mais importante do que a morte. No atual contexto, querer "permitir" que as pessoas se aglomerem e transmitam o vírus a outras, em nome da fidelidade ao crucificado é repetir a Paixão das pessoas que perderam a vida para a Covid (não por terem se exposto desafiadoramente a ela; estas infelizmente colheram o que plantaram, suas vidas não deveriam ter se perdido assim, tão banalmente, mas por terem sido expostas sem saber e sem querer). A Igreja não é, biblicamente, o templo físico. Nem precisa dele para que o culto seja prestado. "Onde estiverem duas ou três pessoas reunidas em meu nome, estarei no meio delas". No nosso tempo, as plataformas virtuais já são lugar de encontro. Elas cabem perfeitamente neste "onde quer que" de Jesus. A Igreja Somos Nós, gritam os anglicanos brasileiros nessa Páscoa, enlutados e enlutadas por tantas mortes e indignados por tanto cinismo. A Igreja Somos Nós também é uma afirmação da laicidade do Estado. Não precisamos da AGU para agir politico-teologicamente em nosso nome.
 
Por último, uma sugestão a quem se sente vindicado por perseguições: abram suas igrejas, paguem as multas que serão cobradas. Assumam os custos de sua ideia de fidelidade acima da vida das pessoas. E assumam as consequências de ir e de chamar para vir às celebrações que não serão de ressurreição, mas de doença e morte. Paguem o preço. E deixem o Estado para a proteção de todos os cidadãos e cidadãs! 
 

Comentários

  1. Esta apropriação de estruturas do Estado para justificar posturas religiosas particulares sempre foi oficiosa dentro da tradição política brasileira. O agravante agora é que isto faz parte de uma estratégia de governo mesmo.

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